560 - 570 Significado da pratica social.indd 560 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 Dirce Stein-Backes1 Marli Stein-Backes2 Alacoque Lorenzini-Erdmann3 Andreas Büscher4 Angela María Salazar-Maya5 Signifi cado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro6 1 RN, PhD. Professor and Researcher of the Nursing Department at the Franciscan University – UNIFRA, Santa Maria/RS (Brasil). backesdirce@ig.com.br 2 Ph.D. in Nursing. Researcher of Santa Catarina Federal University – UFSC/RS (Brasil). marli.backes@bol.com.br 3 Nursing Ph.D. Professor of the Nursing Department at Federal University of Santa Catarina – UFSC – Florianópolis/SC (Brasil). alacoque@newsite.com.br 4 RN, PhD. Researcher and Lecturer of the Institute of Nursing Science at the University of Bielefeld (Germany). andreas.buescher@uni-bielefeld.de 5 RN, PhD. Professor and Researcher of the Nursing School at the Universidad de Antioquia Medellín (Colombia). angela.salazar@udea.edu.co 6 Work produced from the Bilateral Research Project Brazil-Germany: “Developing principles for supporting health promotion acti- vities with social vulnerable populations”. Recibido: 30 de julio de 2013 Enviado a pares: 30 de julio de 2013 Aceptado por pares: 14 de julio de 2014 Aprobado: 26 de agosto de 2014 DOI: 10.5294/aqui.2014.14.4.10 Para citar este artículo / To reference this article / Para citar este artigo Stein-Backes DS, Stein-Backes MS, Lorenzini-Erdmann AL, Büscher A, Salazar-Maya AM. Significado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro. Aquichan. 2014; 14(4): 560-570. DOI: 10.5294/aqui.2014.14.4.10 ResumO Objetiva-se, com este trabalho, possibilitar olhar sobre o papel profissional do enfermeiro no e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro, bem como compreender o significado de sua prática social neste campo de discussões e significações teórico-práticas. Utilizou- se como referencial metodológico a Grounded Theory e como técnica de coleta de dados a entrevista, realizada entre maio a dezembro de 2007, com 35 profissionais da saúde e outros. A análise dos dados evidenciou que o Sistema Único de Saúde pode ser considerado uma estratégia facilitadora e estimuladora do processo de ampliação e consolidação do cuidado de enfermagem como prática social, à medida que sinaliza para uma nova abordagem de intervenção social, pela valorização do ser humano como ser singular e multidimensional, inserido em seu contexto real e concreto. PalavRas-cHave Papel do enfermeiro, enfermagem em saúde comunitária, saúde coletiva, sistema único de saúde, programa saúde da família. (Fonte: DeCS, Bireme). AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 l 560-570 561 Significado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro l Dirce Stein-Backes e outros AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 l 560-570 Significado de la práctica social del enfermero con y desde el Sistema Único de Salud brasileño Resumen Este trabajo tiene por fin posibilitar una mirada hacia el rol profesional del enfermero en el y desde el Sistema Único de Salud brasile- ño; así mismo, comprender el significado de su práctica social en este campo de discusiones y significaciones teórico-prácticas. Se utilizó como referencial metodológico la Grounded Theory y como técnicas de recolección de datos la entrevista, realizada de mayo a diciembre del 2007, con 35 profesionales de la salud y otros. El análisis de los datos evidenció que el Sistema Único de Salud puede considerarse una estrategia facilitadora y estimulante del proceso de ampliación y consolidación del cuidado de enfermería como práctica social a me- dida que señala hacia un nuevo abordaje de intervención social, por la valoración del ser humano como ser singular y multidimensional, insertado en su contexto real y concreto. PalabRas clave Rol del enfermero, enfermería en salud comunitaria, salud colectiva, Sistema Único de Salud, Programa Salud de la Familia. (Fuente: DeCS, Bireme). 562 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 Significance of the Nurse’s Social Practice with and through the Unified Brazilian Health Care System abstRact The purpose of this work is to facilitate a look into the professional role of nurses working with and through Brazil’s Unified Health Care System, and to understand the significance of their social practice in this field of theoretical-practical discussions and meanings. The grounded theory was used as a methodological framework, and interviews were conducted to collect the data. A total of 35 health care professionals were interviewed between May and December 2007. The analysis of the data showed the Unified Health Care System can be considered a facilitating and stimulating strategy in the process to expand and consolidate nursing care as a social practice, inasmuch as it signals a new approach to social intervention based on valuing the person as a unique and multidimensional being immersed in a real and specific context. KeY WORDs Nurse’s role, nursing in community health, collective health, Unified Health Care System, Family Health Program. (Sources: DeCS, Bireme). AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 l 560-570 563 Significado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro l Dirce Stein-Backes e outros Introdução A enfermagem vem ampliando, crescentemente, o seu espaço de atuação na área da saúde, tanto no contexto nacional quanto no cenário internacional. O enfermeiro assume um papel cada vez mais decisivo e proativo, no que se refere à identificação das ne- cessidades de cuidado da população, bem como na promoção e proteção da saúde de indivíduos, famílias e comunidades. O cuidado de enfermagem é, portanto, um componente fun- damental nos sistemas de saúde, considerando a complexidade e as expectativas em torno das demandas de saúde da população. A orientação para a promoção da saúde, ao contrário do foco na doença, implica novas habilidades e competências profissionais do enfermeiro na área social e política, e força-o ao desenvolvi- mento responsável (1), a promoção da saúde, o monitoramento e controle doenças crônicas, tanto em nível local, regional e nacio- nal quanto internacional. Mesmo que interligada e complementada por outros saberes profissionais, a enfermagem pode ser amplamente definida como a ciência do cuidado integral e integrador em saúde, por ter um corpo de conhecimento ampliado e contextualizado no cuidado em saúde. Dessa forma, facilita e direciona o conhecimento necessá- rio e suficiente para o desempenho satisfatório de suas práticas na promoção da saúde (2), pelas possibilidades interativas e as- sociativas com os diferentes espaços, considerando que o enfer- meiro está em contato mais direto com as pessoas, famílias e comunidade (3). Evidências internacionais acenam para a importância do pa- pel profissional do enfermeiro na saúde pública, tanto no espaço domiciliar quanto no espaço comunitário e social. A enfermagem tem a possibilidade de operar, de forma criativa e autônoma, nos diferentes níveis de inserção social, seja por meio da educação para a saúde, que se torna uma ferramenta importante para a promoção da saúde ou prevenção de doenças (4), ou na reabi- litação da saúde dos indivíduos. Esse processo se dá, particu- larmente, no esforço pelo levantamento de situações críticas e a intervenção sistematizada de um plano de cuidados, capaz de superar a fragmentação e assegurar a continuidade e a resoluti- vidade do cuidado em saúde (2-4). Nesse campo de discussões, o papel profissional do enfermeiro é ampliado pela estratégia da Organização Mundial da Saúde “Saúde 21”, saúde Para todos no século XXI e prioridade número um para a região europeia, a qual se concentra em alcançar níveis cada vez mais amplos de saúde e, desse modo, favorecer ao ser humano uma vida social e econo- micamente produtiva e com mais qualidade (5-7). No Brasil, vários estudiosos se empenham em dar visibilida- de ao papel profissional do enfermeiro, seja como prática social comunitária, autônoma, ou como prática assistencial institucio- nalizada (8-13). É preciso levar em conta, no entanto, que a en- fermagem como prática social se cunhou de novos significados conceituais, possibilitados pela concepção de saúde coletiva, campo ainda em constituição e que, gradativamente, vem assu- mindo diversas formas e abordagens. A expressão saúde coletiva, especificamente no contexto bra- sileiro, surgiu, no fim da década de 1970, em um momento de reordenamento de um conjunto de práticas assistenciais, diante da necessidade de ampliar a compreensão do processo saúde- doença dos indivíduos e comunidades, pela inserção e valorização dos diferentes saberes profissionais e a integração com os di- ferentes setores sociais. A compreensão do coletivo significa, a partir de então, a apreensão do individual em seu contexto estru- turado de práticas e reconhecê-lo como sujeito social em cons- tante interação com os outros indivíduos e com o seu entorno, ou seja, o indivíduo se transforma e é transformado continuamente, por meio das relações e interações; torna-se protagonista e autor do processo saúde-doença em seu contexto real e concreto (14). A mudança conceitual da expressão-saúde pública para saúde coletiva— é reflexo de um intenso engajamento dos movimentos sociais na luta pela democratização do país, além da centralidade assumida pela Assembleia Nacional Constituinte, em 1977. Emer- gida como parte dessa luta pela democracia, a Reforma Sanitária, no Brasil, alcançou a garantia constitucional do direito universal à saúde e a construção institucional do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovado na Constituição Federal de 1988 (15, 16). Sistema Único de Saúde — novas possibilidades de inserção social O SUS foi criado, nessa perspectiva, a partir das manifes- tações de um conjunto de necessidades sociais de saúde, as quais imprimem um caráter ético-moral que defende a saúde como di- reito de todo cidadão. Enquanto conquista das lutas participativas e democráticas, o SUS se desenvolve com base nos princípios de acesso, universalidade, equidade e integralidade e com base nas 564 AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 diretrizes organizativas de descentralização, regionalização, hie- rarquização e participação da comunidade (17). Como estratégia de reformulação do modelo brasileiro de atenção à saúde e o fortalecimento dos princípios e diretrizes do SUS, o Ministério da Saúde criou, em 1994, a Estratégia Saúde da Família (ESF), inicialmente denominada Programa de Saúde da Família. A estratégia nasceu na tentativa de repensar os padrões de pensamento e comportamento dos profissionais e cidadãos brasileiros, até então vigentes. Sistematizada e orientada por equipes de saúde da família que envolve médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, odontólogos e Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a ESF busca discutir e ampliar o tradicional modelo sanitário médico-curativista, para a compreensão de uma abor- dagem coletiva, multi e interprofissional, centrada na família e na comunidade, inserida em seu contexto real e concreto (8, 9). Sendo a ESF uma estratégia de fomento à participação da po- pulação, esta deve, crescentemente, promover uma nova relação entre os sujeitos, na qual tanto o profissional quanto o usuário pos- sam/devam ser produtores e construtores de um viver mais sau- dável. Esse envolvimento, no entanto, só é possível mediante um processo dialógico entre os diferentes saberes, no qual cada um contribui com o seu conhecimento peculiar e juntos possi- bilitam uma interação efetiva pela valorização das diferentes experiências e expectativas de vida (9). É nesse contexto de discussões, conquistas e desafios que o enfermeiro precisa delinear cada vez mais e melhor o seu campo de atuação profissional e desenvolver o seu projeto político-legal, coerente com os princípios e diretrizes do SUS. Um projeto pro- fissional, portanto, que necessita considerar o ser humano-ser individual e coletivo— como sujeito e ator social. Nessa direção, questiona-se: Qual o significado do papel profissional do enfer- meiro no Sistema Único de Saúde brasileiro e qual o significado de sua prática social neste campo de discussões e significações teórico-práticas? Pretende-se, a partir do exposto, situar a enfermagem ante as práticas em saúde coletiva, mais especificamente no SUS, para compreender como esta vem se constituindo enquanto uma das áreas que contribui de forma decisiva para a consolidação dos princípios e diretrizes do SUS. Objetiva-se, assim, possibili- tar olhar retrospectivo sobre o papel profissional do enfermeiro no Sistema Único de Saúde brasileiro, bem como compreender o significado de sua prática social neste campo de discussões e significações teórico-práticas. Método Trata-se de um estudo de abordagem qualitativo-explorató- ria, orientado pelo método Grounded Theory. Esse método permi- te explorar os dados de forma criativa, abrangente e interativa, por levar em conta que muitas coisas podem ser consideradas dados de pesquisa. Constituiu-se num processo em que os dados coletados, codificados e comparados de forma simultânea e sis- temática, possibilitam explorar os significados e hipóteses, nesse caso, do papel do enfermeiro, sob diferentes ângulos e espaços (18, 19). Os dados foram coletados entre os meses de maio e dez- embro de 2007, por meio de entrevistas realizadas com 35 par- ticipantes, inseridos nos mais diferentes cenários da saúde da região Sul do Brasil. Dentre os participantes figuram enfermeiros, médicos, nutricionistas, farmacologistas, fisioterapeutas, psicólo- gos, administradores a profissionais de apoio técnico que, após serem orientados acerca dos objetivos da pesquisa, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Em conformidade com o processo de amostragem teórica, o primeiro grupo amostral foi formado por nove Enfermeiros docen- tes, considerados empreendedores em sua área de atuação. As entrevistas foram conduzidas com base nas seguintes perguntas: Como você percebe a prática social do enfermeiro? Qual o papel do enfermeiro no SUS? As entrevistas foram gravadas e transcritas, e os dados fo- ram organizados e analisados com o propósito de identificar os indicadores empíricos definidos como códigos, com base na técni- ca de análise comparativa. A análise dos dados coletados no primeiro grupo amostral permitiu a formação de propriedades iniciais e hipóteses que orientaram a formação do segundo grupo, composto por 12 enfer- meiros assistenciais que atuam na assistência hospitalar ou em clínicas especializadas de saúde. As hipóteses que emergiram da análise dos dados do primeiro grupo evidenciaram que os enfer- meiros, frequentemente, não conseguem perceber a importância e a necessidade do seu fazer profissional na prática assistencial nos cenários de saúde. Assim, os questionamentos para as en- 565 Significado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro l Dirce Stein-Backes e outros trevistas para o próximo grupo foram: Em seu local de trabalho, o que distingue você dos demais profissionais da saúde? Como você percebe a sua prática social enquanto enfermeiro? Os dados do segundo grupo permitiram aprofundar a es- trutura do modelo teórico em maior profundidade, ampliaram a compreensão das categorias emergentes e possibilitaram infor- mações suplementares que sinalizaram para as especificidades do sistema de enfermagem no contexto da formação e nos cená- rios da prática. Já as hipóteses que emergiram da análise e com- paração dos dados do segundo grupo evidenciaram fragmentação entre o pensar dos enfermeiros e outros profissionais da saúde, ideia que ficou explícita na seguinte indagação “O que os demais profissionais da saúde pensam e falam sobre a atuação do En- fermeiro e sua prática social na saúde?” Desse modo, optou-se por um terceiro grupo de entrevistas com 14 profissionais de di- ferentes cursos da área da saúde, os quais foram selecionados com base nas indicações do segundo grupo amostral. Eles foram entrevistados a partir dos seguintes questionamentos: Com base na sua formação, como você percebe a atuação do enfermeiro no SUS? Como você percebe a prática social do enfermeiro? A satu- ração teórica, portanto, foi alcançada com a análise comparativa dos dados dos três grupos amostrais. Os dados empíricos foram analisados com base no processo de codificação aberta, axial e seletiva (18, 19). Os códigos foram organizados de acordo com as suas respectivas similaridades e diferenças e agrupados em categorias e subcategorias. A partir da análise das relações entre as categorias, foi defi- nida a categoria central e, após a estruturação do modelo teórico que representa a articulação entre as categorias e suas subcate- gorias, este foi validado. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob o número 052/2007. Para garantir o anonimato, os participantes da pesqui- sa foram identificados, ao longo do texto, pela letra “E” (entrevis- tado), seguida do número correspondente à ordem de realização das entrevistas (p1, p2, p3... p35). Resultados Neste artigo, mais especificamente, serão apresentadas e discutidas as categorias: SUS — maior sistema de mobilização social; Ampliação da intervenção comunitário-coletiva; Novo modo de pensar e agir e Ampliação das interações e associações profissionais, as quais emergiram como interveniências estraté- gicas para o fenômeno central: “Vislumbrando o cuidado de en- fermagem como prática social empreendedora”. SUS — maior sistema de mobilização social O SUS é reconhecido e ressaltado pelos entrevistados como um dos maiores sistemas de mobilização e prática social, pelo acesso, cobertura, garantia de continuidade, integração com os diversos setores e com as diversas políticas sociais, dentre ou- tros. É reconhecido igualmente como um sistema empreendedor por promover a participação da comunidade nas discussões que dizem respeito à saúde, conforme expresso na fala, a seguir: O Sistema Único de Saúde talvez seja um dos maiores setores de mobilização social. Se considerarmos empreendedorismo como transformação, mobilização, produzimos grandes resultados, principalmente na saúde... Os próprios conselhos de saúde que mobilizam a participação da população e o controle social devem ser considerados empreendedores [...] na lógica do social, os princípios do SUS possuem a definição para o sucesso (E9). Por meio dos princípios da universalidade, integralidade, equidade, o SUS traz implícito um novo modelo de intervenção e participação social, especialmente com a criação da Estratégia Saúde da Família, conforme refletem as falas a seguir: Precisamos reconhecer que o SUS trouxe novas oportunidades de mobilização e participação social, principalmente pelo progra- ma estratégia saúde da família (E3). O SUS representa para o en- fermeiro e demais profissionais da saúde uma grande conquista, pela ampliação das oportunidades de atuação, principalmente na educação e promoção da saúde (E7). Ampliação da intervenção comunitário-coletiva Para os entrevistados, o SUS também passou a dar um novo sentido à saúde como bem-social, com foco na promoção e intervenção comunitário-coletiva, com vistas a superar a frag- mentação do modelo biomédico e hospitalocêntrico, conforme salientam as falas: Anos atrás, o hospital era mais importante porque tinha 70% de trabalhadores empregados... isto mudou. A lógica hoje é a saúde 566 AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 coletiva (E13). A ênfase a partir do SUS é a promoção da saúde, a atenção básica, a saúde da família (E16). [...] temos uma am- plitude de sistema que nenhum outro país tem (E17). O SUS pos- sibilitou um olhar mais ampliado sobre o processo saúde-doença pela valorização dos diferentes saberes profissionais. Possibilitou compreender o indivíduo —ser singular e multidimensional— em seu contexto real e concreto. Os entrevistados evidenciaram que, com a criação do SUS, os profissionais da saúde, mais especificamente o profissional enfermeiro, ampliaram a sua atuação e inserção no campo co- munitário e social. Essa prática foi ampliada ainda mais com as oportunidades oferecidas pela ESF, a qual proporcionou maior visibilidade e se apresenta como um espaço aberto, sensível e flexível para a emancipação e transformação social, como bem evidencia a fala a seguir: A ESF deu maior visibilidade para o papel profissional do enfer- meiro, principalmente no campo da saúde coletiva. O enfermei- ro na saúde coletiva sempre existiu... mas hoje está tendo uma maior visibilidade. A ESF se apresenta como um espaço aberto e sensível para atuar nas famílias, comunidades, associação de moradores, nas escolas, nos sindicatos, nas políticas públicas e outros. Então, hoje, o enfermeiro tem um espaço aberto na so- ciedade para trabalhar a questão da cidadania, das políticas pú- blicas, da educação em saúde (E27). Novo modo de pensar e agir Com a criação do SUS e especialmente a ESF, o enfermeiro tem o seu espaço de atuação garantido, mesmo que para alguns profis- sionais a emergência do novo modo de pensar e agir ainda represen- te certo desconforto e insegurança, pela necessidade de inserção ativa e responsável na vida das comunidades, como reflete a fala: Mesmo sem a coragem de mudar, o enfermeiro e os outros pro- fissionais são levados [provocados] pelo sistema de saúde a mu- darem os seus comportamentos e o modo de pensar (E9). Nessa direção, os entrevistados trazem à tona que indepen- dentemente da vontade pessoal/profissional, os enfermeiros, como os demais profissionais da saúde, são impulsionados pelo sistema a adotarem uma nova postura de intervenção nos diferen- tes cenários da saúde: Mesmo que este profissional não ouse por conta própria, ele está sendo colocado num espaço que está cheio de oportunidades e desafios que precisam ser considerados (E31). O usuário da saúde ainda está muito acostumado a ser atendido em partes, então no início ele estranha muito [...]. Ficou bastan- te visível nas primeiras visitas que o paciente e a família estão desacreditados (E7). O espaço social, caracterizado como espaço familiar e comu- nitário, possibilita um aprendizado instigador e contínuo, além de uma intensa troca de experiências tanto para enfermeiros e outros profissionais como para os usuários da saúde. Possibilita, também, a realização e bem-estar profissional, pela conquista da autonomia e reconhecimento por parte dos usuários da saúde, conforme refletem as falas: Eu preciso encontrar espaços onde eu possa fortalecer a autono- mia, e a comunidade me proporciona isso. (E6). Na família a gen- te precisa levar em conta a autonomia do usuário [...] tem a pos- sibilidade de troca, de eu também aprender. Então existe toda uma interação, o usuário passa a ser ator do processo (E13). Pelo fato de ser um curso que tem uma formação universitá- ria generalista, a enfermagem está qualificada, no entender dos entrevistados, para integrar e fomentar ativamente os princípios do sistema de saúde vigente, sobretudo, nas atividades intera- tivas e gerenciais, as quais requerem maior envolvimento, sis- tematização e comprometimento com as reais necessidades de saúde da população. Ampliação das interações e associações profissionais A partir da lógica do SUS, o cuidado de enfermagem é visibili- zado como prática interativa, multidimensional e interdisciplinar, ou seja, como prática social que integra uma rede de relações e associações comunitárias. Nessa direção, os participantes en- tendem que é preciso ocorrer uma articulação crescente com os diferentes profissionais que atuam no sistema de saúde, para que a pessoa humana, em seu contexto singular e coletivo, seja com- preendida como um ser integral —protagonista do seu processo saúde-doença—. O enfermeiro é reconhecido, nessa perspectiva, pela habi- lidade interativa e associativa, por compreender o ser humano como um todo, pela integralidade da assistência à saúde, pela capacidade de acolher. Além disso, identifica-se com as necessi- dades e expectativas dos indivíduos pela capacidade de interagir diretamente com o usuário e a comunidade, bem como pela ca- pacidade de promover o diálogo entre os usuários e a equipe de 567 Significado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro l Dirce Stein-Backes e outros saúde da família. No entender dos entrevistados, o enfermeiro se aproxima, identifica e procura criar uma relação de empatia com o usuário, independentemente das suas condições sociais. O enfermeiro é aquele que encaminha e otimiza as intervenções de cuidado em saúde de modo que integre e contemple tanto os saberes profissionais quanto os saberes dos usuários. Os resultados evidenciam, em suma, que os profissionais de saúde se encontram, por meio do SUS e mais especificamente pela ESF, diante de um novo modelo assistencial, no qual o impacto do desconhecido e a insegurança ante o novo são inevitáveis, mas mo- tivadores e animadores para o crescimento profissional e o desen- volvimento social integrado e integrador. Desse modo, tanto o SUS quanto a ESF podem/devem ser considerados estratégias facilita- doras e estimuladoras do processo de ampliação e consolidação do cuidado de enfermagem como prática social empreendedora, com- prometida com o desenvolvimento humano e a transformação social. Discussão As discussões em torno da atuação dos profissionais da saú- de no SUS convergem para o reconhecimento de que o enfermeiro é o interlocutor e o principal agente catalisador das políticas e programas voltados para a saúde coletiva, em especial para a ESF, que requer um envolvimento efetivo com as reais necessida- des de saúde das famílias e comunidades (8). Esse pensar é corroborado por profissionais da área, ao ar- gumentarem que o enfermeiro, cuja essência e especificidade é o cuidado ao ser humano em todas as suas dimensões, individual ou coletivamente, de forma integral e holística, é formado para atuar em diferentes espaços sociais, tais como: na atenção, na gestão, no ensino, na pesquisa, no controle social, bem como no fomento de ações educativas e de promoção da saúde dos indi- víduos, famílias e comunidades. Nessa direção, a autonomia e o protagonismo social do enfermeiro são construídos por conquis- tas técnico-científicas, legais e políticas pela produção do conhe- cimento próprio (20, 21). O Ministério da Saúde brasileiro, por meio do Departamento de Gestão da Educação na Saúde, vem atuando, crescentemente, no sentido de reorientar e ampliar a formação dos profissionais da saúde, de modo geral, para atenção básica, com o intuito de fortalecer a cobertura da ESF e aumentar a resolutividade da atenção à saúde no SUS. A referida formação também faz par- te da Política Nacional de Educação Permanente, que traz à tona aspectos como o conceito ampliado de saúde; a utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, que considerem o trabalho como eixo estruturante das atividades; o trabalho em equipe multiprofissional e transdisciplinar; a integração entre en- sino e serviços de saúde; o aperfeiçoamento da atenção integral à saúde; a qualificação da gestão, dentre outros (20). A partir dessas iniciativas do Ministério da Saúde e da Edu- cação, o enfermeiro tem voltado, crescentemente, o seu foco de atenção para a educação, promoção e proteção da saúde. Nessa direção, os gestores, usuários e demais profissionais da saúde visualizam a atuação da enfermagem como algo considerado im- prescindível e que nos serviços há melhor desempenho quando estes são coordenados por enfermeiros. Para alguns autores, no entanto, o potencial do enfermeiro precisa ainda ser evidencia- do, para um melhor aproveitamento da sua força de trabalho, o que pode assim refletir na melhoria da qualidade da assistência prestada por esses profissionais junto aos serviços de saúde (9). No campo assistencial comunitário ou na ESF, o enfermei- ro lança mão tanto de uma série de tecnologias que incluem os equipamentos e o instrumental necessários ao desenvolvimento do trabalho —como, por exemplo, os aparelhos, a estrutura fí- sica, os procedimentos técnicos, os folhetos educativos, os con- hecimentos estruturados acerca da epidemiologia, planejamento em saúde e outros— quanto de tecnologias que envolvem as relações, interações e associações entre os usuários e famílias, que dizem respeito ao vínculo, ao acolhimento, às relações huma- nizadas, dentre outros (4). Nesse sentido, a atuação do enfermei- ro vai além da dimensão técnico-assistencialista ou da aplicação imediata e direta dos conhecimentos técnico-científicos e se con- centra em saberes que levam em consideração as inter-relações e a dinâmica coletivo-social de todos os envolvidos no processo. No campo gerencial, destacam-se as possibilidades de inser- ção na agenda municipal por meio das políticas públicas, as quais visam crescentemente atender tanto às necessidades de saúde da população quanto considerar os níveis de satisfação profissio- nal e pessoal dos trabalhadores. Deve-se considerar, no entanto, que o processo de trabalho ainda é marcado por diversos interes- ses, conflitos e necessidades, ou seja, por tensões e confrontos, nos quais, de um lado, se encontram os interesses políticos e, de outro, os interesses dos trabalhadores em geral, que nem sempre são equacionados de forma a atender aos anseios de ambas as partes envolvidas. 568 AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 A partir do exposto, o enfermeiro não se apresenta neutro, como também não atua somente com saberes e práticas técnicas, ainda que necessite destas para constituir-se como prática social nos diferentes cenários da saúde. O espaço do enfermeiro, mais especificamente a partir do SUS e da ESF, apresenta-se como um campo aberto e sensível às necessidades sociais e de saúde. É evidente, porém, que esses esforços ainda são coroados pelo êxi- to apenas modesto, considerando a necessidade de ampliar as discussões em torno do modelo de saúde, ainda hegemônico nos serviços e práticas de saúde, a formação de profissionais qualifi- cados e comprometidos para o SUS e a ESF e, principalmente, a ampliação do debate acerca da enfermagem como prática social empreendedora. Considerações finais Um olhar retrospectivo sobre o papel do profissional enfer- meiro no Sistema Único de Saúde brasileiro permite argumentar que o SUS e, de modo especial a ESF, podem ser considerados estratégias facilitadoras e estimuladoras do processo de mobi- lização social, da ampliação da intervenção comunitário-coletiva, de um novo modo de pensar e agir, bem como pelas novas possi- bilidades interativas e associativas, à medida que sinalizam para uma nova abordagem de intervenção social, não mais focada nos reducionismos do saber médico-curativista, mas centrada na edu- cação, promoção e proteção da saúde. Em outras palavras, sendo uma profissão fundamental no sistema de saúde, a enfermagem se destaca e diferencia pelo desenvolvimento de práticas inte- rativas e integradoras de cuidado, as quais vêm adquirindo uma repercussão cada vez maior, tanto na educação e promoção da saúde quanto no fomento de políticas voltadas para o bem-estar social das famílias e comunidades. Nessa direção, a enfermagem se configura, crescentemente, como a profissão do futuro pela possibilidade de compreender o indivíduo não mais de forma frag- mentada, mas como um ser singular e complexo, capaz de conti- nuamente autoorganizar-se e projetar-se como autor do processo saúde-doença. Basta, no entanto, que a enfermagem invista em atitudes proativas, capazes de promover e emancipar o indivíduo e família como protagonistas da sua própria história. Promovendo o cuidado ao ser humano em todas as suas di- mensões, como essência e especificidade da profissão, a enfer- magem tem a possibilidade de transitar pelos diferentes campos de conhecimento, bem como pelas diferentes realidades sociais. Tendo como foco a pessoa humana, a família e a comunidade, a enfermagem apresenta grande possibilidade de contribuir para a construção de um saber interdisciplinar, além de estabelecer canais efetivos de comunicação com os diversos setores sociais e, dessa forma, possibilitar estratégias mais eficazes e resoluti- vas de cuidado em saúde. O papel do enfermeiro é reconhecido, em suma, pela capaci- dade e habilidade de compreender o ser humano como um todo, pela integralidade da assistência à saúde, pela capacidade de acolher e identificar-se com as necessidades e expectativas dos indivíduos e famílias, pela capacidade de acolher e compreender as diferenças sociais, bem como pela capacidade de promover a interação e associação entre os usuários, a equipe de saúde da família e a comunidade. A enfermagem se aproxima, identifica e procura criar uma relação efetiva com o usuário, independente- mente das suas condições econômicas, culturais ou sociais, ou seja, busca otimizar as intervenções de cuidado em saúde de modo que integre e contemple tanto os saberes profissionais quanto os saberes dos usuários e da comunidade. 569 Significado da prática social do enfermeiro com e a partir do Sistema Único de Saúde brasileiro l Dirce Stein-Backes e outros Referências 1. Carreras Viñas M. Nuevos rumbos en la enfermería. Cuenta y Razón [internet] 1999 [Data da consulta 20 maio 2010]; 113: 81-8. Disponível em: http://www.cuentayrazon.org/revista/pdf/113/Num113_013.pdf. 2. Trezza MCAF, Santos RM, Leite JL. Enfermagem como prática social: um exercício de reflexão. Rev Bras Enferm, Brasília 2008; 61(6): 904-8. 3. Costa GD, Cotta RMM, Ferreira MLM, Reis JR, Franceschini SCC. Family health: challenges in the reorientation process of the assistance model. Rev Bras Enfer 2009; 62 (1): 113-8. 4. Backes DS. Viewing nursing care as a social enterprising practice [Tese de Doutorado]. Santa Catarina (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2008. 5. Maurer FA, Smith CM. Community/Public Health Nursing Practice: Health for Families and Populations. 3a ed. St. Louis: Elsevier Saunders; 2005. 6. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Brasília: Minis- tério da Saúde; 2012. 7. Schaeffer D, Büscher A, Ulrich R, Flöthmann J. Community Health Assessment für Bielefeld-Schildesche. Veröffentli- chungsreihe des Instituts für Pflegewissenschaft. Bielefeld: Universität Bielefeld (IPW); 2008. 8. Almeida PF, Giovanella L, Mendonça MH, Escorel S. Challenges for health care coordination: strategies for integrating levels of care in large cities. Cad Saúde Pública 2010; 26 (3): 286-98. 9. Freitas MCMC, Nunes BMVT. Processo de trabalho do enfermeiro na estratégia saúde da família. Revista Interdisciplinar NOVAFAPI 2010; 3 (3): 39-43. 10. Giovanella L et al. Family health: limits and possibilities for an integral primary care approach to health care in Brazil. Ciênc. saúde coletiva 2009; 14 (3): 783-94. 11. Carvalho YM, Ceccin RB. Formação e educação em saúde: aprendizados com a saúde coletiva. Em: Campos GW (Org). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007. p. 232-41. 12. Costa GD, Cotta RMM, Ferreira MLM, Reis JR, Franceschini SCC. Family health: challenges in the reorientation process of the assistance model. Rev Bras Enfer 2009; 62 (1): 113-38. 13. Oliveira MAC, Pereira IC. Primary Health Care essential attributes and the Family Health Strategy. Rev Bras Enfer 2013; 66 (esp): 158-64. 14. Moretti-Pires RO. Complexidade em Saúde da Família e formação do futuro profissional de saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13 (30): 153-66. 15. Brasil. Ministério da Saúde. Constituição. República Federativa do Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 1988. 16. Fleury S. Brazilian sanitary reform: dilemmas between the instituing and the institutionalized. Rev C S Col 2009; 14 (3):743-52. 17. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377 (9779): 1778-1797. 18. Charmaz K. Constructing grounded theory: A practical guide through qualitative analysis. Thousand Oaks, CA: SAGE; 2006. 19. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 20. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde/Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. 570 AÑO 14 - VOL. 14 Nº 4 - CHÍA, COLOMBIA - DICIEMBRE 2014 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 21. Silva FV. Autonomia profissional na enfermagem é construída por conquistas técnico-científicas, legais e pelo desen- volvimento de uma prática cidadã. Rev Bras Enfer 2007; 49 (2): 1-20. 22. Silva CMC, Meneghim MC, Pereira AC, Mialhe FL. Educação em saúde: uma reflexão histórica de suas práticas. Ciênc. saúde coletiva 2010; 15 (5): 2539-50. Colaboradores DS Backes – Trabalhou na concepção, delineamento e interpretação dos dados. MS Backes – Trabalhou na redação do artigo e interpretação dos dados. AL Erdmann – Trabalhou na pesquisa e provação da versão a ser publicada. A Büscher — Trabalhou na concepção, análise e revisão crítica do artigo. AS Salazar-Maya – Análise e revisão crítica do artigo, bem como encaminhamento para a revista.