403 - 412 Processo de trabalho em reabilitacao.indd 403 Soraia Dornelles Schoeller1 Luana Maria Bento2 Jorge Lorenzetti3 Ana Carolina Klein4 Denise Pires5 Processo de trabalho em reabilitação: a perspectiva do trabalhador e do usuário 1 Enfermeira, Doutora em Enfermagem Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. soraia.dornelles@ufsc.br 2 Enfermeira, Mestranda em enfermagem na UFSC, Brasil. luhbento@gmail.com 3 Enfermeiro, Doutor em Enfermagem pela UFSC, Brasil. jorgelorenzetti@hotmail.com 4 Enfermeira na Prefeitura Municipal de Schroeder (Santa Catarina), Brasil. anacarolinaklein@hotmail.com 5 Enfermeira, Doutora em Enfermagem pela UFSC, Brasil. piresdp@yahoo.com Recibido: 22 de mayo de 2015 Enviado a evaluadores: 24 de mayo de 2015 Aceptado por evaluadores: 23 de julio de 2015 Aprobado: 28 de julio de 2015 DOI: 10.5294/aqui.2015.15.3.8 Para citar este artículo / To reference this article / Para citar este artigo Schoeller SD. Bento L. Lorenzetti J. Klein AC. Pires D. Processo de trabalho em reabilitação: a perspectiva do trabalhador e do usuário. Aquichan. 2015;15(3):403-412. DOI: 10.5294/aqui.2015.15.3.8 RESUMo A prevalência das deficiências físicas constitui-se grave problema de saúde nas sociedades contemporâneas, o que demanda um processo longo de cuidados com ênfase na reabilitação. Este é um estudo de caso com abordagem qualitativa realizado em um centro de reabilitação de referência estadual, o qual envolveu 10 usuários e 22 trabalhadores com o objetivo de analisar o processo de trabalho em reabilitação. Foram coletados dados por meio de entrevistas com usuários e trabalhadores, observação sistemática e análise docu- mental de prontuários. Emergiram quatro categorias temáticas: usuários com lesão medular atendidos no centro de reabilitação; equipe profissional que atua junto às pessoas com lesão medular; aspectos do processo de trabalho que favorecem a reabilitação; aspectos do processo de trabalho que a dificultam. Neste, destacaram-se déficits nos instrumentos de trabalho; nos aspectos que facilitam a reabili- tação, destacou-se o trabalho em equipe humanizado. Conclui-se que o trabalho multiprofissional facilita o processo de reabilitação, o que traz benefícios aos usuários, e que o trabalho de enfermagem é parte essencial desse processo. PalavRaS-cHavE Gestão em saúde, humanização da assistência, reabilitação, cuidados de enfermagem, medula espinhal (Fonte: DeSC, BIREME). AÑO 15 - VOL. 15 Nº 3 - CHÍA, COLOMBIA - SEPTIEMBRE 2015 l 403-412 404 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 AÑO 15 - VOL. 15 Nº 3 - CHÍA, COLOMBIA - SEPTIEMBRE 2015 l 403-412 Proceso de trabajo en rehabilitación: la perspectiva del trabajador y el usuario RESUMEN La prevalencia de discapacidades físicas se constituye en un problema de salud en las sociedades contemporáneas, lo que demanda un proceso largo de cuidados con énfasis en la rehabilitación. Este es un estudio de caso con abordaje cualitativo realizado en un centro de rehabilitación de referencia distrital, con 10 usuarios y 22 trabajadores, a fin de analizar el proceso de trabajo en rehabilitación. Se re- colectaron datos por medio de entrevistas a usuarios y trabajadores, observación sistemática y análisis documental de historias clínicas. Emergieron cuatro categorías temáticas: usuarios con lesión medular atendidos en el centro de rehabilitación; equipo profesional que actúa junto a las personas con lesión medular; aspectos del proceso de trabajo que favorecen la rehabilitación; aspectos del proceso de trabajo que la dificultan. En esta última, se destacaron los déficits en los instrumentos de trabajos; en los que facilitan la rehabilitación, se destacó el trabajo humanizado en equipo. Se concluye que el trabajo multiprofesional facilita el proceso de rehabilitación, lo que trae beneficios a los usuarios, y que el trabajo de enfermería es parte esencial de este proceso. PalabRaS clavE Gestión en salud, humanización de la asistencia, rehabilitación, cuidados de enfermería, médula espinal (Fuente: DeCS, BIREME). 405 Processo de trabalho em reabilitação: a perspectiva do trabalhador e do usuário l Soraia Dornelles Schoeller e outros The Working Process during Rehabilitation: From the Standpoint of the Worker and the User abSTRacT The prevalence of physical disabilities is a serious health problem in contemporary societies and one that requires a long process of care with an emphasis on rehabilitation. This is a case study with a qualitative approach. It was conducted at a district rehabilitation center with 10 users and 22 workers to analyze the working process during rehabilitation. The data were collected through interviews with users and workers, systematic observation, and documentary analysis of medical records. Four subject categories emerged: users with spinal cord injury who were being treated at the rehabilitation center; the professional team that works with persons who have spinal cord injuries; aspects of the working process that favor rehabilitation; and aspects of the working process that hamper rehabilitation. As for the latter, shortcomings in the instruments for rehabilitation work and in those facilitating rehabilitation were noted, and the humani- zed work of the team was highlighted. It was concluded that multidisciplinary work by professionals facilitates the rehabilitation process, which means benefits for users, and nursing work is an essential part of this process. KEywoRdS Health management, humanizing care, rehabilitation, nursing care, spinal cord (Source: DeCS, BIREME). AÑO 15 - VOL. 15 Nº 3 - CHÍA, COLOMBIA - SEPTIEMBRE 2015 l 403-412 406 AÑO 15 - VOL. 15 Nº 3 - CHÍA, COLOMBIA - SEPTIEMBRE 2015 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 Introdução A lesão medular constitui-se grave problema de saúde na atualidade, especialmente devido ao aumento da violência ur- bana, evidenciado nos óbitos do capítulo das Causas Externas —acidentes e violências—, que inclui acidentes de trânsito, que- das, ferimentos por arma de fogo e arma branca, afogamentos, suicídio, agressões, dentre outras (1). No Brasil, em 2010, ocorreram 143.256 óbitos por causas ex- ternas, 4.086 em Santa Catarina; destes, 52,96% entre 15 a 39 anos. Dos 143.256 óbitos por essas causas ocorridos em 2010 no Brasil, 50.380 foram em vias públicas, o que confirma os aciden- tes de trânsito como os grandes responsáveis por essas mortes (2). Porém, a maior parcela das vítimas de acidentes sobrevive e requer atenção prolongada dos serviços de saúde. No Brasil, na última década, para cada óbito em acidente de trânsito, houve 13 feridos (3). As vítimas não fatais são a face oculta das Causas Externas no Brasil. Em que condições de saúde sobrevivem essas pessoas aos eventos traumáticos dos quais são vítimas? Não se dispõe de informações seguras sequer para afirmar que parcela dessas vítimas adquire graves incapacidades físicas e dependerá, por conseguinte, da assistência de serviços de saúde para o resto de suas vidas (3). Parte dessas vítimas apresentará alguma necessidade es- pecial: alterações em suas formas e/ou funções físicas e/ou mentais. A deficiência física relaciona-se com a perda ou anorma- lidade de estrutura ou função do corpo (4). A magnitude do tema deficiência versus cuidado em saúde é inversamente proporcional à relevância com que o assunto é tra- tado. Os cursos de graduação na área da saúde, particularmente o de enfermagem, não evidenciam disciplinas voltadas ao tema reabilitação (5). A pouca relevância da temática na formação na área da saúde pode resultar em profissionais não preparados para desenvolver um processo de trabalho necessário à reabili- tação das pessoas com deficiência. Processo de trabalho diz respeito à ação transformadora, que no caso da saúde é desenvolvida, predominantemente, por equi- pes e envolve trabalho profissional (6-7). Este engloba: 1) objetos de trabalho — são objetos a serem transformados, que podem ser matérias-primas, materiais já previamente elaborados ou, ainda, certos estados ou condições pessoais ou sociais; 2) meios de trabalho ou instrumento — máquinas, ferramentas ou equipa- mentos em geral e também conhecimentos; 3) força de trabalho — é composta pelos trabalhadores, responsáveis por transfor- marem objetos para se atingir fins previamente estabelecidos; 4) finalidade — visa satisfazer as necessidades e expectativas de seres humanos no seu contexto social e histórico. A análise do processo de trabalho nos serviços de saúde possibilita a identificação de pontos críticos e a elaboração de estratégias de intervenção que contribuem para uma abordagem mais eficaz e integral no sentido do proposto pelo Sistema Úni- co de Saúde (SUS) e pela Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão (PNH) vigente no Brasil. Essa política pro- põe mudanças no SUS que expandam os laços de solidariedade e corresponsabilidade na gestão, no cuidado e na formação de profissionais (8). A questão norteadora da pesquisa foi: como acontece o pro- cesso de trabalho em reabilitação em um centro de referência estadual? A partir das três perspectivas acima descritas —defi- ciência, processo de trabalho e humanização—, este estudo teve por objetivo analisar o processo de trabalho em um Centro de Reabilitação de referência estadual. Metodologia Utilizou-se como método o estudo de caso, com abordagem qualitativa, com dados coletados de outubro a dezembro de 2012, em um centro de referência em reabilitação para o Estado de Santa Catarina (sul do Brasil). Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com profissionais e usuários, observação sistemática do processo de trabalho e análise docu- mental dos prontuários dos usuários entrevistados. Trabalhou-se com triangulação de dados coletados a fim de possibilitar uma análise em maior profundidade sobre o processo de trabalho em reabilitação. Participaram desta investigação 22 trabalhadores da equipe de saúde e 10 usuários com lesão medular do programa de rea- bilitação do centro de referência. Os trabalhadores participantes foram aqueles envolvidos no programa de reabilitação da pessoa com lesão medular, independentemente do nível de formação/ categoria profissional. Não participaram da pesquisa os que não 407 Processo de trabalho em reabilitação: a perspectiva do trabalhador e do usuário l Soraia Dornelles Schoeller e outros estavam presentes no centro durante a realização das entrevis- tas. Em categorias com mais de um profissional, participou o mais antigo no serviço. Os trabalhadores foram identificados pela letra “T”, seguida da ordem das entrevistas. Os usuários foram pessoas com lesão medular do programa de reabilitação. A amostra deu-se por conveniência e incluiu ape- nas os usuários residentes no município de Florianópolis, inseri- dos no programa no momento da pesquisa, com mais de 16 anos. Estes foram convidados a participar do estudo pós-consulta de enfermagem. Para manter o anonimato, foram identificados pela letra “U”, seguida da ordem em que foram entrevistados. Para a entrevista dos trabalhadores, foi utilizado um roteiro que continha perguntas sobre idade, sexo, escolaridade, profis- são, ocupação, estado civil, religião, formação, trabalho no cen- tro, além de questionamentos sobre sua participação no processo de trabalho em reabilitação. Com os usuários, foi utilizado um roteiro que continha perguntas sobre idade, sexo, escolaridade, profissão, ocupação, rendimento mensal, estado civil, religião, causa da lesão, data da lesão, fase do programa de reabilitação e contribuição do processo de trabalho e dos profissionais para sua reabilitação. Os prontuários dos usuários participantes do estudo foram averiguados a fim de se coletar anotações e interação dos profis- sionais envolvidos no cuidado, organização do prontuário, encam- inhamentos, letra legível e informações duplicadas. Esses dados permitiram constatar a interação entre os diversos trabalhadores envolvidos no processo de trabalho em reabilitação e sua articu- lação com a política de humanização vigente no país. Na observação sistemática do processo de trabalho, o foco esteve nas reuniões de equipe, nas consultas (profissionais de nível superior), além do trabalho realizado pelos profissionais que contribuem indiretamente para o processo de reabilitação — ser- viços gerais e marcenaria. Os dados foram analisados segundo a análise temática que segue: categorização, inferência, descrição e interpretação (9). O estudo foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Fe- deral de Santa Catarina, aprovado pelo parecer número 128.520, em 22/10/2012; portanto, são respeitados todos os requisitos éticos para pesquisa com seres humanos. Este estudo é parte de outro financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Santa Catarina (Fapesc), intitulado O cui- dado em saúde ao deficiente físico em Santa Catarina — reali- dade e desafios. Resultados e discussão Os resultados são apresentados na sequência das categorias temáticas: usuários com lesão medular atendidos no centro de reabilitação; equipe profissional que atua junto às pessoas com lesão medular; aspectos do processo de trabalho que favorecem a reabilitação; aspectos do processo de trabalho que a dificultam. Usuários com lesão medular atendidos no centro de reabilitação Foram entrevistados dez usuários participantes do programa, todos do sexo masculino e com idade entre 16 e 42 anos. Sete são casados e três solteiros. Seis possuem ensino fundamental incom- pleto, um ensino fundamental completo, um ensino médio incomple- to, um ensino médio completo e um ensino superior incompleto. As profissões foram: colhedor de frutas, pintor, segurança, pedreiro, motorista de caminhão, mecânico, comerciante, caldei- rista, inspetor de sinistro e um sem trabalho. Quanto à religiosi- dade: seis são católicos, dois evangélicos, um umbandista e um sem religião. Sobre a etiologia da lesão, quatro foram causadas por arma de fogo (duas balas perdidas, uma briga e um acidente de tra- balho); duas, quedas; duas, acidente de moto; uma, acidente de carro e uma, anestesia raquimedular. Aqui se evidenciou que o trauma foi a principal causa de lesão medular e que é consequên- cia da violência urbana, como já visto em outro trabalho (10). O tempo de lesão variou de seis meses a nove anos. Quanto ao nível da lesão, variou de tetraplegia (nível C5) à paraplegia baixa (nível L5). Dois não souberam informar. Equipe profissional que atua junto às pessoas com lesão medular Dos 22 trabalhadores entrevistados, seis atuam na área administrativa. Destes, um acrescenta às responsabilidades ad- ministrativas —gerência— o atendimento direto aos usuários 408 AÑO 15 - VOL. 15 Nº 3 - CHÍA, COLOMBIA - SEPTIEMBRE 2015 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 devido à demanda aumentada e à falta de profissionais; 16 tra- balham diretamente no cuidado, mas não somente daqueles com lesão medular. O tempo de trabalho no centro variou de um mês a 31 anos. Somente dois trabalham há menos de dois anos; dez trabalham entre três a dez anos e dez trabalham há mais de dez anos. Des- tes, todos cursaram o ensino médio completo; 14 são gradua- dos, dentre os quais, seis mestres e um doutor. Nove concluíram cursos e atualizações em áreas que os auxiliam no processo de trabalho em reabilitação. Quatro já trabalharam em outras ins- tituições de reabilitação. Os demais estão há, pelo menos, dois anos na instituição. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), normalmen- te os profissionais de saúde não têm conhecimentos nem habili- dades adequados para o atendimento às condições associadas com a deficiência (4). Entretanto, a pesquisa evidenciou que os profissionais dessa equipe têm experiência e capacitação formal para o trabalho em reabilitação. Aspectos do processo de trabalho que favorecem a reabilitação O processo de trabalho é regido pela finalidade; a partir dela, o trabalho é planejado (6). Como finalidade do processo de trabal- ho aqui investigado, tem-se a reabilitação do usuário, de forma a possibilitar/contribuir para sua independência. A reabilitação ocorre com o trabalho multidisciplinar, evidenciado no centro de reabilitação. O acesso se dá com consulta na medicina física e reabilitação. A partir daí, são estipulados objetivos e são dados encaminhamentos para as diversas profissões e especialidades (fisioterapia, enfermagem, neurologia, cardiologia, ortopedia, nutrição, fonoaudiologia, serviço social, psicologia e educação física) de acordo com a necessidade de cada usuário. Durante o programa, são feitas reuniões semanais da equipe multidisci- plinar a fim de serem debatidos os casos mais relevantes, casos em que os objetivos estipulados não estão sendo alcançados. São discutidas as razões pelas quais não se alcançaram os objetivos e também as diversas profissões especificam o que fizeram e o que poderiam estar fazendo para mudar a situação. Juntas propõem um planejamento estratégico para alcançá-los, no qual a partici- pação do usuário é considerada. O alcance dos objetivos avalia o trabalho da equipe multidisciplinar e do usuário, e evidencia se o trabalho está indo ao encontro do que se planejou. O Relatório Mundial sobre Deficiência evidenciou que outros profissionais, além do médico, são responsáveis pela reabilitação — a terapia, que restabelece e compensa a perda de funciona- lidade em todas as áreas de vida da pessoa. De acordo com o Relatório, “equipes multidisciplinares podem trazer muitos bene- fícios à reabilitação dos pacientes” (4:121). Ainda, devem atuar de forma interdisciplinar ao considerar o objeto de trabalho de forma ampliada e participante no processo de reabilitação. São inerentes ao processo de trabalho em reabilitação o olhar e a intervenção das diversas profissões sobre a pessoa que necessi- ta da intervenção. Reabilitação abrange “aspectos educacionais, sociais e terapêuticos” (11:2.265). Algumas medidas terapêuticas podem ser seguidas nas ins- tituições de reabilitação, dentre elas o treinamento, exercícios e estratégias de compensação, educação, apoio e aconselhamento, além de modificações no ambiente: “as medidas de reabilitação visam às funções e estruturas corporais, atividades e partici- pação, fatores ambientais e pessoais. Elas contribuem para que a pessoa atinja e mantenha a funcionalidade ideal na interação com seu ambiente, utilizando os resultados abrangentes” (4:99). A enfermagem tem contribuição fundamental no processo de reabilitação. Isso porque é a profissão que tem a integrali- dade do sujeito como fundamento do próprio cuidado e volta-se para a realização de atividades que objetivam o autocuidado na vida diária. Ao iniciar a reabilitação no centro, os usuários entrevistados consideraram como principal objetivo a ser atingido a recupe- ração da atividade motora. Entretanto, no decorrer do processo, ampliaram essa ideia e acrescentaram outros aspectos mais im- portantes como vestir-se sozinho e mudar de decúbito, tarefas simples que deveriam ser feitas sem auxílio. Por fim, perceberam que o objetivo principal do processo de reabilitação é a conquista de independência para as atividades da vida diária, como se ob- serva no depoimento de um participante. Voltar a andar, mas depois percebi que me transferir da cadeira, me vestir sozinho é bom também. É o termo de reabilitação, né? Claro que se pudesse voltar a andar também era bom, né! (UVII). No processo de trabalho, “a atividade do homem opera uma transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto so- bre que atua por meio do instrumental de trabalho” (12:3). No 409 Processo de trabalho em reabilitação: a perspectiva do trabalhador e do usuário l Soraia Dornelles Schoeller e outros centro de reabilitação, o usuário caracteriza-se como objeto do processo de trabalho, é aquele que precisa ser transformado para que se alcance a finalidade. Estudo atesta que “todo pro- cesso de trabalho se realiza em algum objeto, sobre o qual se exerce ação transformadora, com o uso de meios e em condições determinadas” (6:23). Entretanto, na saúde, o objeto de trabalho é o usuário, um ser humano, da mesma natureza de quem realiza o trabalho (7). Nesse sentido, o trabalho em saúde implica re- lações; para atingir a finalidade do trabalho, depende da partici- pação ativa de quem é o “objeto de trabalho”, em especial no caso do processo de reabilitação. Quanto ao meio de trabalho, “é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto” (12:2). São artefatos utilizados pelos trabalhadores no processo de trabalho para a transformação do objeto. Tais instrumentos podem ser tanto máquinas quanto ferramentas, equipamentos em geral. Abarcam conhecimentos, protocolos e tecnologias dis- poníveis para o trabalho (6-7). A maquinaria e os equipamentos disponíveis no centro in- cluem: computadores, telefones, equipamentos específicos para a realização de sessões de fisioterapia, estrutura física dos con- sultórios e da instituição adaptada à pessoa com deficiência; material de alto custo para atendimento especializado (toxina botulínica, coberturas para feridas); materiais auxiliares, o que inclui as cadeiras de roda, de banho, órteses, próteses, sapatos ortopédicos e demais aparatos ofertados pela instituição por meio do programa Órteses, Próteses e Meios Auxiliares de Loco- moção (OPMAL). Os trabalhadores do centro de reabilitação utilizam os instru- mentos de trabalho já mencionados. Nos casos de desnutrição se faz a orientação nutricional para o próprio paciente ou familiar, utilizando ou não suplementos nutri- cionais, fornecidos pela instituição, quando necessário. [...] Nos casos de úlcera por pressão, também, orientação nutricional e suplemento caso necessário (TV). Temos uma pequena parcela de usuários com lesão medular. São pessoas que têm doença neuromuscular, que utilizam um apare- lho para auxílio na respiração, chamado BIPAP-Synchrony (TVI). No que diz respeito a como o trabalho é desenvolvido e ao trabalho em equipe, 14 dos profissionais entrevistados mencio- naram que sempre compartilham informações sobre o cuidado prestado ao usuário com outros profissionais do centro; dois, às vezes, compartilham, e três discutem nas reuniões de equipe. Fo- ram observadas trocas de informações intersetoriais, além das reuniões semanais de estudos de caso para discussão multidis- ciplinar. Um número menor de trabalhadores (seis) afirmou ver o usuário na sua integralidade e quatro mencionaram a importância do tratamento e prevenção de comorbidades desencadeadas pela lesão. Também foi registrada a importância do trabalho burocráti- co e administrativo para o bom resultado da reabilitação. Acho que isso é fundamental, pois é a partir dessa integração que podemos ter um trabalho transdisciplinar e mais eficaz. Temos poucos espaços, mas nestes, temos trocas muito importantes entre as áreas. Principalmente na neuroadulto. Temos reunião administrativa às terças-feiras e reunião técnica às quintas-feiras. Nesses momentos, temos uma troca que possibilita a linguagem única e mais integrada (TXXI). Dada a complexidade do processo de reabilitação, não há uma profissão que, sozinha, detenha a totalidade do trabalho e realize todas as ações necessárias. Nesse processo, a articulação dos diversos profissionais envolvidos é tão ou mais importante do que a ação individual. A reabilitação “é uma diversidade de técnicas e condutas em diálogo – ... [na qual] cada profissional terá que se haver com os trabalhos realizados por colegas de outras áreas” (11:2.264). O trabalho em equipe é importante ferramenta no atendimen- to ao usuário, pois o considera na sua integralidade. A troca de informações entre os profissionais e entre estes e o usuário é ins- trumento facilitador do processo de trabalho desenvolvido para a reabilitação do usuário com lesão medular. As características de trabalho em equipe, da abordagem interdisciplinar e da integra- lidade vêm ao encontro da proposta do Ministério da Saúde de Humanização e Clínica Ampliada. A Clínica Ampliada e Compartilhada é uma racionalidade que articula e inclui diversos olhares no cuidado aos usuários de modo a respeitar suas singularidades. Envolve discussão em equipes interdisciplinares com a participação dos usuários (13). A instituição pesquisada realiza suas atividades contemplando os diversos olhares ao usuário, conforme se demonstra nos de- poimentos a seguir. 410 AÑO 15 - VOL. 15 Nº 3 - CHÍA, COLOMBIA - SEPTIEMBRE 2015 AQUICHAN - ISSN 1657-5997 Trabalho com o médico, fisioterapeuta e nutricionista... Depende das necessidades do paciente (TIII). Converso com médico fisiatra, psicólogo, enfermeiro, nutricionis- ta, assistente social, fisioterapia… educador físico. Qualquer pa- ciente que eu atenda e que seja atendido por outro profissional do centro de reabilitação, eu entro em contato com o profissional para trocar informações a respeito do paciente (TV). Todos os usuários entrevistados mencionaram diversos pro- fissionais como importantes no processo de reabilitação. Isso evidencia duas questões: há comunicação entre os profissionais e os usuários, e o trabalho multiprofissional realmente acontece. Enfermagem, fisioterapia, médico fisiatra, fonoaudiólogo, assis- tente social e nutricionista (UI). Enfermagem [...] Profissionais de Fisioterapia [...] Porque são os profissionais que mais temos convivência. Mas a atenção de todos os profissionais é válida (UIX). O cuidado em reabilitação exige a comunicação estreita entre os profissionais envolvidos no processo e entre estes e os usuá- rios (14). As reuniões de equipe contam com a participação de todas as profissões do centro de reabilitação: médico cardiologista, educa- dor físico, equipe de enfermagem, médico fisiatra, fisioterapeuta, médico neurologista, médico ortopedista, nutricionista, fonoau- diólogo, assistente social e psicólogo. Nessas reuniões, que são semanais, são discutidos o ingresso e a alta dos usuários no pro- grama de reabilitação, as condutas terapêuticas necessárias e realizadas, além de estudos de casos de usuários. Sim, em reuniões semanais sobre os pacientes, estudo de caso (TXXI). Geralmente os problemas são levados para o estudo de caso, e praticamente 90% dos problemas são resolvidos (TIII). A melhora da qualidade de vida do usuário é ressaltada como contribuição importante por quatro trabalhadores. Um deles rela- ta que auxilia na reabilitação por meio da avaliação da condição social do usuário, e dois relataram contribuir mediante o suporte emocional. Isso vem ao encontro do Relatório Mundial sobre De- ficiência, que assume qualidade de vida como abrangente e “que incorpora de forma complexa a saúde física, o estado psicológico, o nível de independência, as relações sociais, as crenças pessoais das pessoas e a relação com os fatores ambientais que as afe- tam” (4:315). O acolhimento é uma das diretrizes da política de huma- nização do SUS, com o qual se busca construir o compromisso coletivo dos trabalhadores do SUS para que as relações com o usuário sejam mais estreitas e de confiança, que é a base para o cuidado (15). No centro de reabilitação, todos os profissionais demonstraram preocupação em acolher o usuário. No entanto, a enfermagem foi citada pelos entrevistados como a que mais acolhe dentre as profissões da saúde. As enfermeiras são as que mais me ajudaram... São as que mais me atendem (UVI). O enfermeiro, no processo de cuidar, ampara o usuário, sis- tematiza quais são as ações de saúde necessárias para o cuidado e identifica suas demandas; além disso, favorece a comunicação entre todos os profissionais de saúde (16). Isso é inerente ao cuidado de enfermagem. Aspectos do processo de trabalho que dificultam a reabilitação Estudo internacional evidencia as diferenças entre os diver- sos serviços de reabilitação voltados à pessoa com lesão medular (17). Esta também é uma realidade do Brasil, posto que as dife- rentes instituições públicas ou privadas se organizam de forma específica. Porém, o planejamento em saúde é obrigatório para as instituições públicas e “será indutor de políticas para a inicia- tiva privada” (18). Contudo, não é o que acontece no centro de reabilitação já que o planejamento não envolve todas áreas e não há uma reunião de planejamento anual e/ou mensal com todos os setores. O setor de enfermagem destaca-se no planejamento. Não se- gue nenhum protocolo, mas planeja parte de suas atividades: faz a escala de trabalho dos funcionários do setor; realiza o pedido de materiais e medicamentos; controla a distribuição dos medi- camentos por meio de um arquivo do Excel criado para facilitar a visualização dos medicamentos disponíveis e agenda seus aten- dimentos previamente pela Agenda do Google criada pelo setor para organizar seus atendimentos. 411 Processo de trabalho em reabilitação: a perspectiva do trabalhador e do usuário l Soraia Dornelles Schoeller e outros Outros aspectos que dificultam a reabilitação foram: déficits nos instrumentos de trabalho —não disponibilização do prontuário eletrônico, identificado pelos profissionais— e área física inade- quada para o acesso dentro do centro, identificado pelos usuários. Um fator dificultador é não ter prontuário eletrônico, que já exis- te na rede dos hospitais do estado e que ainda não chegou aqui o sistema, mas não é por falta de solicitação (TIX). No que se refere ao acesso interno, muitos dos pacientes te- traplégicos, por não terem os movimentos finos das mãos, não conseguem abrir as portas do ambulatório de enfermagem, pois as maçanetas são de giro. Somente pela falta da adaptação dentro do centro (UI). Considerações finais A lesão medular e as deficiências físicas têm forte relação com o aumento da violência urbana e constituem-se em proble- ma de saúde pública. No entanto, sua importância não se traduz em ações efetivas voltadas ao conhecimento e ao enfrentamento desse problema. Na análise do processo de trabalho em saúde no centro de reabilitação estudado, identificou-se, como facilitador do pro- cesso de reabilitação, o trabalho em equipe, desenvolvido com trocas interdisciplinares, na perspectiva dos diversos olhares profissionais, e com o envolvimento de trabalhadores e usuá- rios. Isso foi reconhecido pelos usuários, objeto de trabalho em saúde. Quanto aos aspectos que dificultam a reabilitação, profissionais e usuários identificaram déficits nos instrumentos de trabalho. Importante destacar que a enfermagem é peça-chave no pro- cesso de trabalho em reabilitação e é destacada pelos usuários como a que tem mais contato com ele. Este estudo contribui para a qualificação do cuidado em enfermagem voltado às pessoas com deficiência, o que evidencia que o processo de trabalho em reabilitação é, por um lado, multiprofissional e, por outro, tem como um dos profissionais mais importantes o enfermeiro. Considerando-se os resultados obtidos e a escassez de es- tudos que abordam esta temática, recomenda-se a realização de novas pesquisas sob o olhar da teoria do processo de trabalho, o que contribuirá para um melhor entendimento da assistência a pessoas com deficiência. Referências 1. Ministério da Saúde do Brasil. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Brasília (DF): MS; 2001. 2. 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