(Microsoft Word - 33-Bio_24006_revis\343o) 1598 Review Article Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 GLICOGENOSES: UMA REVISÃO GERAL GLYCOGENOSES: AN OVEREVIEW Carolina Sales CARLOS1; Vitor Falcão de OLIVEIRA1; Ludmilla Grossi Furtado SARAIVA1; Patrícia Grossi DORNELAS1; José Assis Carvalho CORRÊA1; Assaiah Moreira Marrazzo da COSTA1; Carolina Oliveira SANTOS1; Daniela de Paiva MOREIRA1; Joandey Caixeta ROCHA1; Lucas Santos BOAVENTURA1; Mariana Cata Preta de BARROS1; Pedro Igor Buna BANDEIRA1; Pedro Henrique Menezes de REZENDE1; Wallace dos Santos VAZ FILHO; Luciana Karen CALÁBRIA2 1. Graduando no Curso de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora, Governador Valadares , Brasil; 2. Doutora em Bioquímica e Docente. Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Avançado Governador Valadares. lkcalabria@gmail.com RESUMO: Compreender o metabolismo dos diferentes tipos de glicogênio no organismo humano torna-se de suma importância, pois além da sua relevância no fornecimento energético e no controle da glicemia, o glicogênio pode estar relacionado com diversos tipos de doenças que comprometem a saúde do ser humano, especialmente pela deficiência em enzimas de vias anabólicas e catabólicas. Em um contexto de avanços no desenvolvimento de pesquisas relacionadas às áreas da saúde, uma série de estudos busca entender fisiologicamente os caminhos do glicogênio em situações de exercício, repouso, jejum, dentre outras, além de analisar os mais variados transtornos decorrentes da deficiência no metabolismo desse polissacarídeo. Um exemplo são as glicogenoses, doenças hereditárias, em sua maioria de caráter recessivo, relacionadas com o armazenamento de glicogênio. Dentre alguns dos treze tipos de glicogenoses podemos citar a glicogenose tipo 0, uma doença rara que se desenvolve na infância e implica na produção defeituosa da enzima glicogênio sintase; e a glicogenose tipo I, também conhecida como Doença de Von Gierke, que se caracteriza pela deficiência no complexo enzimático glicose-6-fosfatase, responsável pela catalisação da hidrólise de glicose-6-fosfato na metabolização do glicogênio. Apesar de todas essas doenças serem caracterizadas por glicogenoses, elas possuem diferenças quanto ao órgão afetado, à gravidade de suas manifestações, o perfil etário que cada uma atinge e no efeito enzimático. Por isso, a necessidade de estudos que correlacionam as principais causas e sintomas, e visam proporcionar uma visão global dessas desordens de hereditariedade. PALAVRAS-CHAVE: Glicogênio. Doença hereditária. Deficiência enzimática. INTRODUÇÃO É inquestionável a importância do glicogênio para o funcionamento adequado do metabolismo humano, constituindo-se como principal polissacarídeo de reserva energética das células animais, sendo composto por subunidades de glicose e ramificando-se entre 8 a 12 monômeros, em média. Pode ser encontrado principalmente no fígado e no músculo, onde sua concentração é mais abundante. A via glicogênica é responsável pela sua formação, ao contrário da glicogenólise, que provoca a degradação dos grânulos para atender as necessidades metabólicas. O ciclo de Cori, que converte glicose em lactato na musculatura esquelética em hipóxia, como lactato em glicose nos hepatócitos, utiliza o glicogênio como principal fonte de glicose durante esses processos. No contexto apresentado, o papel do glicogênio é distinto nos tecidos muscular esquelético e hepático; sendo sua regulação distinta também nesses diferentes locais. O glicogênio muscular é essencial somente para o músculo, sendo metabolizado nesse local para fornecer energia para a contração muscular, enquanto o glicogênio hepático tem por função regular a glicemia e fornecer substrato energético para outros tecidos. Dentre alguns reguladores, pode-se citar a insulina, a adrenalina, o nucleotídeo AMP, os íons cálcio, e as enzimas glicogênio sintase e glicogênio fosforilase que participam, respectivamente, da síntese e da degradação desse polissacarídeo. Neste trabalho, descrevemos e discutimos os conceitos e resultados mais recentes sobre glicogenoses, obtidos em estudos com pacientes e em modelos experimentais. GLICOGENOSES A deficiência de enzimas específicas envolvidas na síntese ou na degradação de glicogênio pode ocasionar em defeito metabólico no catabolismo ou no anabolismo desse polissacarídeo. Isso pode resultar em doenças genéticas relacionadas ao armazenamento do glicogênio que, 1599 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 em sua maioria, apresentam caráter autossômico recessivo. Também denominadas glicogenoses, essas doenças se diferem no efeito enzimático, no órgão afetado, na idade em que ocorrerão as primeiras manifestações clínicas da doença e na severidade desses sintomas (VIEIRA; CARNEIRO; ASSÊNCIO-FERREIRA, 2004), podendo ser classificadas em treze tipos. Tipo 0 A glicogenose tipo 0 é caracterizada por uma deficiência na enzima glicogênio sintase (EC 2.4.1.11) (LABERGE et al., 2003; ORHO et al., 1998). Ela afeta primordialmente o fígado e as principais manifestações dessa doença rara desenvolvida na infância são hipoglicemia e hipercetonomia (LABERGE et al., 2003; ORHO et al., 1998). Há vários casos relatados na literatura sobre essa disfunção enzimática e, em um deles, há um relato de caso de uma criança de 9 anos que sofria, no período da manhã, convulsões acompanhadas de hipoglicemia, hipercetonomia e taxas de lactato não alteradas (AYNSLEY-GREEN; WILLIAMSON; GITZELMANN, 1977). Para a confirmação dessa patologia, biópsias no músculo e no fígado foram realizadas, revelando baixa concentração da enzima glicogênio sintase hepática e nenhuma alteração significativa no músculo (AYNSLEY-GREEN; WILLIAMSON; GITZELMANN, 1977). Assim, a deficiência nesta enzima pode ser uma suspeita a glicogenose tipo 0 em crianças quando estas, em jejum, apresentam sonolência, atenção dispersa, palidez, movimentos oculares descoordenados, convulsões, hipercetonomia e hipoglicemia (GITZELMANN et al., 1996). Tipo I A glicogenose tipo I (doença de Von Gierke) é causada pela deficiência no complexo da glicose-6-fosfatase (EC 3.1.3.9) responsável pela hidrólise da glicose-6-fosfato (SANTOS- ANTUNES; FONTES, 2009) em fosfato e glicose durante o metabolismo do glicogênio. Trata-se de uma anomalia gerada pela mutação no gene que codifica esta enzima, cuja frequência na população é de 1:100.000 nascimentos (SANTOS-ANTUNES; FONTES, 2009; SARTORATO et al., 1998). Existem quatro subtipos para essa patologia: tipo Ia, caracterizado por uma disfunção na unidade catalítica deste complexo enzimático; tipo Ib, relacionado com o transporte deficiente de glicose- 6-fosfato; tipo Ic, caracterizado por um defeito no transportador de fosfato do retículo endoplasmático para o citoplasma; e tipo Id, relacionado com uma disfunção da saída de glicose (OZEN, 2007; SANTOS-ANTUNES; FONTES, 2009). Essa enfermidade compromete a glicemia, uma vez que o glicogênio estocado não é metabolizado pelas células hepáticas e renais, contribuindo para o quadro de hipoglicemia, hepatomegalia, hiperlipidemia, hiperuricemia, retardo no crescimento e acidose láctica (REIS et al., 2001). Testes enzimáticos e a análise da mutação no gene que codifica essa enzima é uma alternativa para o diagnóstico da doença, inclusive pré-natal (REIS et al., 2001; SARTORATO et al., 1998). Tipo II A glicogenose tipo II (doença de Pompe) é uma doença grave e muitas vezes fatal (MELLIES; LOFASO, 2009), em que há um acúmulo de glicogênio lisossômico, primordialmente, nas células dos tecidos musculares (SAVEGNAGO et al., 2012), como resultado da deficiência da enzima alfa-glicosidase ácida (EC 3.2.1.20) (MELLIES; LOFASO, 2009). Esse distúrbio manifesta-se clinicamente como uma doença neuromuscular que apresenta diferentes taxas de progressão (MELLIES; LOFASO, 2009). A doença de Pompe distingue-se de outras doenças neuromusculares por apresentar características clínicas específicas, como o início precoce de problemas respiratórios anteriores à fraqueza dos membros (MELLIES; LOFASO, 2009). Essa disfunção pode se manifestar sob duas formas: forma infantil, em crianças nos primeiros meses de vida; e forma tardia, em crianças com idade mais avançada e em adultos (SAVEGNAGO et al., 2012). Os sintomas em cada uma dessas formas também são variáveis: na forma infantil, as crianças apresentam fraqueza muscular e cardiomiopatia (SAVEGNAGO et al., 2012); enquanto na forma tardia, o principal sintoma é a insuficiência respiratória sendo procedida de fraqueza muscular (MELLIES; LOFASO, 2009). Tipo III A glicogenose tipo III (doença de Cori) é um transtorno causado pela deficiência da enzima desramificadora do glicogênio que possui dois locais catalíticos: amilo-1,6-glicosidase (EC 3.2.1.33) e 4-alfa-glicanotransferase (EC 2.4.1.25) (DAGLI; SENTNER; WEINSTEIN, 1993-2013). Esse distúrbio provoca um acúmulo de glicogênio no citosol celular, dificultando o funcionamento, principalmente do fígado e dos músculos. Existe relato da prevalência dessa patologia na população norte africana com ascendência judaica (MILI et al., 2012), e de acordo com os sinais e sintomas, pode ser classificada em quatro subtipos (IIIa, IIIb, IIIc e 1600 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 IIId) (DAGLI; SENTNER; WEINSTEIN, 1993- 2013), acometendo o organismo de formas distintas. Isso é, enquanto os subtipos IIIa e IIIc afetam as células hepáticas e musculares causando miopatias, os tipos IIIb e IIId afetam somente os hepatócitos. Em todos os tipos observa-se a hepatomegalia na infância. Com relação à incidência, a maioria dos casos enquadra nos tipos IIIa e IIIb, já os relacionados aos tipos IIIc e IIId demonstram-se raros (DAGLI; SENTNER; WEINSTEIN, 1993- 2013). Tipo IV A glicogenose tipo IV (síndrome de Andersen) é uma doença rara caracterizada pela deficiência da enzima amilo-1,4→1,6- transglicosidase (EC 2.4.1.18), que é essencial na ramificação do glicogênio (AKMAN et al., 2011; LEE et al., 2011; LEITE et al., 2001). A atividade residual dessa enzima provoca o acúmulo, principalmente no fígado e no músculo, de corpúsculos de poliglicosana, que é alvo no diagnóstico da doença (AKMAN et al., 2011). A baixa atividade (5-20%) dessa enzima induz, na fase infantil e adulta, distúrbios que acometem além do sistema muscular, o sistema nervoso central e periférico (AKMAN et al., 2011). As manifestações clínicas relacionadas a essa doença são, principalmente, hipotonia muscular, cirrose, falhas no crescimento, devastação muscular nas extremidades inferiores, disfunção neuromuscular, hepatoesplenomegalia e desenvolvimento motor lento (AKMAN et al., 2011; LEITE et al., 2001). Tipo V A glicogenose tipo V (doença de McArdle) é um distúrbio causado pela deficiência na enzima miofosforilase (EC 2.4.1.1) que afeta a musculatura esquelética (LORENZONI et al., 2005). Essa condição impede que o glicogênio seja direcionado para a hidrólise, o que resulta no seu acúmulo no músculo (LEVY et al., 1980). Clinicamente, podemos considerar três estágios evolutivos: a infância e a adolescência, quando há fadiga muscular excessiva após exercícios físicos; entre os 20 e 40 anos, quando se iniciam as cãibras e ocorre mioglobinúria depois de atividades físicas; e após os 40 anos, quando as cãibras e a mioglobinúria tornam-se menos intensas, enquanto que a fraqueza muscular e as amiotrofias ficam evidentes (LEVY et al., 1980). O caso clínico, relatado por Levy e colaboradores (1980), ilustra um paciente com 36 anos de idade, acometido pela doença há 15 anos e que, durante sua evolução, apresentou sintomas como urina vermelha, sensação de rigidez e de fraqueza nos membros superiores e inferiores, e fadiga excessiva após esforços físicos. Além disso, não houve aumento da concentração de lactato após exercício do antebraço em condições isquêmicas (LEVY et al., 1980). Portanto, nestes casos, o diagnóstico pode ser confirmado pelos baixos níveis de lactato durante um teste de exercício físico, pela deficiência na atividade enzimática em biópsia muscular e por estudos moleculares que avaliam variações no gene da enzima miofosforilase (QUINLIVAN et al., 2010). Tipo VI A glicogenose tipo VI (doença de Hers) é causada por uma mutação no cromossomo 14, traduzindo deficientemente a enzima glicogênio fosforilase (EC 2.4.1.1) no fígado. Essa enzima está presente também em células musculares e nervosas, porém a sua tradução nesses locais é decorrente de mutações nos cromossomos 11 e 20, respectivamente (BURWINKEL et al., 1998). A enzima glicogênio fosforilase catalisa, juntamente com a enzima desramificadora, a degradação de glicogênio em glicose-1-fosfato, sendo essencial no armazenamento de glicose na forma de glicogênio (BURWINKEL et al., 1998). Assim como as glicogenoses tipo I e tipo III, a doença de Hers também é caracterizada por hepatomegalia (VIEIRA; CARNEIRO; ASSÊNCIO-FERREIRA, 2004). Fraqueza muscular, hemorragia nasal e crise de hipoglicemia são outros sintomas que podem se manifestar na doença do tipo VI. Ademais, por manifestar principalmente em crianças, pode ocasionar retardo de crescimento (BURWINKEL et al., 1998). Tipo VII A glicogenose tipo VII (doença de Tarui) é uma desordem genética rara que ocasiona um defeito na enzima fosfofrutoquinase (EC 2.7.1.11) (LEVY et al., 1980). Essa disfunção promove um acúmulo de glicogênio no músculo esquelético (TARUI et al., 1965), pois há um bloqueio na metabolização da glicose-6-fosfato pela via glicolítica. Os sintomas são heterogêneos, como hemólise, morte durante a infância e intolerância ao exercício (TARUI et al., 1965), devido a fraqueza muscular, fadiga fácil e cãibras pós-exercícios (VIEIRA; CARNEIRO; ASSÊNCIO-FERREIRA, 2004). Devido a sintomatologia das doenças de McArdle e de Tarui ser semelhante, o diagnóstico diferencial entre elas é feito pela histoquímica da biópsia do músculo (LEVY et al., 1980). Tipo VIII 1601 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 A glicogenose tipo VIII caracteriza-se pela ineficiência funcional da enzima fosforilase-b- quinase (EC 2.7.11.19) que participa do metabolismo do glicogênio, a partir da regulação da enzima glicogênio fosforilase. Pode ser causada por mutações em três diferentes genes das subunidades da fosforilase quinase: PHKA2, PHKB e PHKG2 (BURWINKEL et al., 2003). Manifesta-se ainda na infância geralmente como uma condição benigna, desenvolvendo hepatomegalia, retardo do crescimento e níveis aumentados de lipídeos e aminotransferase, muitas vezes com completa resolução dos sintomas na puberdade. Uma minoria dos pacientes apresenta um fenótipo mais grave, com hipoglicemia de jejum sintomático e histologia hepática anormal que pode progredir para cirrose (BURWINKEL et al., 2003). A biópsia do fígado de uma criança com 17 meses de idade, retratada por um caso clínico registrado por Ludwig e colaboradores (LUDWIG; WOLFSON; RENNERT, 1972), mostraram células dilatadas carregadas de glicogênio e sem sinais de fibrose periportal. O exame físico constatou um abdome saliente devido ao crescimento do fígado. Além disso, constataram- se ocasiões de hipoglicemia após períodos de até 10 horas e aumento dos níveis das enzimas transaminases e de lipídios no sangue. O diagnóstico preciso foi determinado pela análise do tecido hepático (LUDWIG; WOLFSON; RENNERT, 1972). Tipo IX Diferente das outras glicogenoses, a do tipo IX é uma doença recessiva ligada ao cromossomo X e, por isso, mais comum em homens (REPETTO et al., 2000). Com prevalência na infância, esta doença é caracterizada pela deficiência da enzima fosforilase-quinase hepática (BAPTISTA; VIANA, 2002; BEAUCHAMP et al., 2007) ou da fosforilase- quinase muscular (EC 2.7.11.19) (GOLDSTEIN et al., 1993-2013), que participam da glicogenólise (REPETTO et al., 2000). A enzima hepática, a qual a deficiência é mais comum, é composta por quatro subunidades (alfa, beta, gama e delta) que, dependendo de qual é afetada, a gravidade dos sintomas apresentados varia (BEAUCHAMP et al., 2007). Neste caso, os sintomas são aparecimento precoce de hepatomegalia, atraso de crescimento e, frequentemente, cetose e hipoglicemia em jejum (GOLDSTEIN et al., 1993-2013). Por outro lado, as manifestações clínicas relacionadas a enzima muscular são intolerância ao exercício, mialgia, cãibras musculares, mioglobinúria e fraqueza muscular progressiva (GOLDSTEIN et al., 1993- 2013). Análises da atividade da enzima fosforilase- quinase possibilitam o diagnóstico laboratorial dessa glicogenose (BAPTISTA; VIANA, 2002). As glicogenoses tipos III, VI e IX geralmente têm curso mais benigno do que as tipo I e IV e, por isso, apenas a regulação nutricional já poderia controlar esses três tipos (REPETTO et al., 2000). Tipo X A glicogenose tipo X ocorre devido à deficiência da enzima fosfoglicerato mutase (EC 5.4.2.1) (SERVIDEI; DIMAURO, 1989), em que os principais estudos relacionados evidenciam um acúmulo de glicogênio nos músculos dos pacientes (NAINI et al., 2009). Uma característica marcante dessa patologia é a associação comum com agregados tubulares provenientes do retículo sarcoplasmático, perceptíveis em biopsias musculares que, apesar de ser uma alteração patológica inespecífica, não está presente nas outras glicogenoses (DIMAURO; SPIEGEL, 2011). Neste caso, os principais sintomas são a intolerância aos exercícios, cãibras, mioglobinúria e fraqueza (SERVIDEI; DIMAURO, 1989). Tipo XI A glicogenose tipo XI (síndrome de Fanconi-Bickel) é uma doença rara do armazenamento de glicogênio (SETOODEH; RABBANI, 2012), também considerada autossômica recessiva, em que apresenta 34 mutações no gene GLUT2 (MIRANDA-SÁNCHEZ et al., 2009) e que o defeito enzimático subjacente ainda é desconhecido (EKBOTE et al., 2012). Os sintomas dessa patologia são hepatomegalia, acidose tubular renal proximal e retardo de crescimento acentuado (SETOODEH; RABBANI, 2012), havendo um acúmulo de glicogênio no fígado e nos rins (MIRANDA-SÁNCHEZ et al., 2009). Setoodeh e Rabbani (2012) relataram um caso clínico de uma criança do gênero feminino que, aos 33 dias de idade, apresentava cetoacidose diabética. Nesse aspecto, o tratamento foi direcionado com insulina, como diabetes neonatal. Porém, aos 14 meses de idade, com a suspensão da insulina, a criança obteve baixa estatura, hepatomegalia, acidose tubular renal proximal e raquitismo aos quatro anos de idade, diagnosticando-se, então, a síndrome de Fanconi- Bickel. Isso comprova que diabetes neonatal ou cetoacidose diabética podem ser as primeiras manifestações clínicas em crianças com a glicogenose tipo XI (SETOODEH; RABBANI, 2012). Tipo XII 1602 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 A glicogenose tipo XII está associada a um quadro de miopatia e anemia hemolítica hereditária, causada pela substituição de um único aminoácido dentro da estrutura tetrâmica da enzima aldolase A (EC 4.1.2.13) (HICKS; WARTCHOW; MIERAU, 2011), que também está presente no músculo esquelético e eritrócitos. Os sintomas característicos da doença são intolerância ao exercício e fraqueza após doença febril (DIMAURO; BRUNO, 1998). Há um relato clínico que registra uma criança com necessidades de transfusões sanguíneas já no primeiro ano de vida devido aos episódios inexplicáveis de icterícia e anemia. Além disso, fraqueza muscular precoce e febre foram constatadas no momento da hospitalização. No acompanhamento, foram observados vários episódios de rabdomiólise com elevações da creatina quinase, aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase, lactato desidrogenase e bilirrubina; diminuição na concentração de hemoglobina e hematócrito. Desta maneira, os testes bioquímicos e hematológicos podem ser úteis na detecção desta glicogenose (KOPP; BISTRIAN, 1996). CONCLUSÃO O metabolismo do glicogênio é de fundamental importância para manter a homeostase do organismo e a sua disfunção tem como consequência as glicogenoses. Nesse aspecto, o conhecimento das vias metabólicas contribui para um diagnóstico mais eficaz, pois cada reação afetada levará a um conjunto de sintomas específicos, sendo importante a observação dos sinais clínicos peculiares e comuns a cada tipo de glicogenose. Associado a isso, avanços nas técnicas histológicas e bioquímicas podem aumentar e efetivar o índice de diagnóstico, podendo antecipar o tratamento dessas desordens hereditárias ligadas ao metabolismo e estoque do glicogênio. ABSTRACT: The comprehension of the metabolism of different types of glycogen in the human organism becomes extremely important since, other than its relevance in providing energy and controlling glycemia, glycogen can be related to many types of diseases that compromise the human health, especially when it comes to the deficiency in enzyme anabolic and catabolic pathways. In the context of advances in the development of researches related of health area, many studies inquire a physiological understanding of the glycogen pathways exercising, resting, fasting and other conditions, as well as analyzing the most varied disorders arising from hereditary deficiencies in the carbohydrate metabolism, in polysaccharide specially. The glycogenoses are hereditary disorders, which present mainly recessive feature, related with the glycogen storage. Among the thirteen types of glycogenoses, type 0 is a rare disease that develops in early stages of life and implies in the production of defective glycogen synthase enzyme; and type I is characterized by the deficiency of the glucose-6-phosphatase enzyme complex, responsible for catalyzing the hydrolysis of glucose-6- phosphate in glycogen metabolism. Although all these diseases are characterized as being glycogenoses, they possess differences as to the organ affected, the gravity of their manifestations, the age it begins to manifest, and in which way it affects enzymatic properties. Therefore, there is a necessity of studies that correlates the main causes and symptoms, and aim to provide a global vision of these hereditary disorders. KEYWORDS: Glycogen. Hereditary disease. Enzymatic deficiency. REFERÊNCIAS AKMAN, H. O.; SHEIKO, T.; TAY, S. K.; FINEGOLD, M. J.; DIMAURO, S.; CRAIGEN, W. J. Generation of a novel mouse model that recapitulates early and adult onset glycogenosis type IV. Human Molecular Genetics, Oxford, v. 20, n. 22, p. 4430-4439, 2011. AYNSLEY-GREEN, A.; WILLIAMSON, D. H.; GITZELMANN, R. Hepatic glycogen synthetase deficiency. Definition of syndrome from metabolic and enzyme studies on a 9-year-old girl. Archives of Disease in Childhood, London, v. 52, n. 7, p. 573-579, 1977. BAPTISTA, J. M. A.; VIANA, G. L. Determinação da atividade da fosforilase b-quinase em hemácias. Revista Brasileira de Análises Clínicas, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 15-20, 2002. 1603 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 BEAUCHAMP, N. J.; DALTON, A.; RAMASWAMI, U.; NIINIKOSKI, H.; MENTION, K.; KENNY, P.; KOLHO, K. L.; RAIMAN, J.; WALTER, J.; TREACY, E.; TANNER, S.; SHARRARD, M. Glycogen storage disease type IX: High variability in clinical phenotype. Molecular Genetics and Metabolism, Orlando, v. 92, n. 1-2, p. 88-99, 2007. BURWINKEL, B.; BAKKER, H. D.; HERSCHKOVITZ, E.; MOSES, S. W.; SHIN, Y. S.; KILIMANN, M. W. Mutations in the liver glycogen phosphorylase gene (PYGL) underlying glycogenosis type VI. American Journal of Human Genetics, Chicago, v. 62, n. 4, p. 785-791, 1998. BURWINKEL, B.; ROOTWELT, T.; KVITTINGEN, E. A.; CHAKRABORTY, P. K.; KILIMANN, M. W. Severe phenotype of phosphorylase kinase-deficient liver glycogenosis with mutations in the PHKG2 gene. Pediatric Research, Basel, v. 54, n. 6, p. 834-839, 2003. DAGLI, A.; SENTNER, C. P.; WEINSTEIN, D. A. Glycogen storage disease type III. In: PAGON, R. A.; BIRD, T. D.; DOLAN, C. R.; STEPHENS, K.; ADAM, M. P. (Ed.). GeneReviews. Seattle (WA): University of Washington.1993-2013. DIMAURO, S.; BRUNO, C. Glycogen storage diseases of muscle. Current Opinion in Neurology, Philadelphia, v. 11, n. 5, p. 477-484, 1998. DIMAURO, S.; SPIEGEL, R. Progress and problems in muscle glycogenoses. Acta Myologica, Napoli, v. 30, n. 2, p. 96-102, 2011. EKBOTE, A. V.; MANDAL, K.; AGARWAL, I.; SINHA, R.; DANDA, S. Fanconi- Bickel Syndrome: mutation in an Indian patient. Indian Journal of Pediatrics, New Delhi, v. 79, n. 6, p. 810-812, 2012. GITZELMANN, R.; SPYCHER, M. A.; FEIL, G.; MULLER, J.; SEILNACHT, B.; STAHL, M.; BOSSHARD, N. U. Liver glycogen synthase deficiency: a rarely diagnosed entity. European Journal of Pediatrics, Berlin, v. 155, n. 7, p. 561-567, 1996. GOLDSTEIN, J.; AUSTIN, S.; KISHNANI, P.; BALI, D. Phosphorylase Kinase Deficiency. In: PAGON, R. A.; BIRD, T. D.; DOLAN, C. R.; STEPHENS, K.; ADAM, M. P. (Ed.). GeneReviews. Seattle (WA): University of Washington.1993-2013. HICKS, J.; WARTCHOW, E.; MIERAU, G. Glycogen storage diseases: a brief review and update on clinical features, genetic abnormalities, pathologic features, and treatment. Ultrastructural Pathology, London, v. 35, n. 5, p. 183-196, 2011. KOPP, A.; BISTRIAN, B. R. Inherited metabolic myopathy and hemolysis due to a mutation in aldolase A. The New England Journal of Medicine, Boston, v. 335, n. 16, p. 1242-1243, 1996. LABERGE, A. M.; MITCHELL, G. A.; VAN DE WERVE, G.; LAMBERT, M. Long-term follow-up of a new case of liver glycogen synthase deficiency. American Journal of Medical Genetics, Hoboken, v. 120A, n. 1, p. 19-22, 2003. LEE, Y. C.; CHANG, C. J.; BALI, D.; CHEN, Y. T.; YAN, Y. T. Glycogen-branching enzyme deficiency leads to abnormal cardiac development: novel insights into glycogen storage disease IV. Human Molecular Genetics, Oxford, v. 20, n. 3, p. 455-465, 2011. LEITE, C. A. C.; MENEZES, D. B.; BRITO, A. K. M.; SANTOS, M. I. Q. Glicogenese hepática: análise de um caso. Revista de Pediatria do Ceará, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 40-44, 2001. LEVY, J. A.; GAGIOTI, S. M.; CAVALIERI, M. J.; PEREIRA, J. R. Doença de Mcardle: registro de caso. Arquivo Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 38, n. 4, p. 411-414, 1980. 1604 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 LORENZONI, P. J.; LANGE, M. C.; KAY, C. S. K.; SCOLA, R. H.; WERNECK, L. C. Estudo da condução nervosa motora na doença de McArdle. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 874-877, 2005. LUDWIG, M.; WOLFSON, S.; RENNERT, O. Glycogen storage disease, type 8. Archives of Disease in Childhood, London, v. 47, n. 255, p. 830-833, 1972. MELLIES, U.; LOFASO, F. Pompe disease: a neuromuscular disease with respiratory muscle involvement. Respiratory Medicine, London, v. 103, n. 4, p. 477-484, 2009. MILI, A.; BEN CHARFEDDINE, I.; MAMAI, O.; ABDELHAK, S.; ADALA, L.; AMARA, A.; PAGLIARANI, S.; LUCCHIARRI, S.; AYADI, A.; TEBIB, N.; HARBI, A.; BOUGUILA, J.; H'MIDA, D.; SAAD, A.; LIMEM, K.; COMI, G. P.; GRIBAA, M. Molecular and biochemical characterization of Tunisian patients with glycogen storage disease type III. Journal of Human Genetics, Tokyo, v. 57, n. 3, p. 170-175, 2012. MIRANDA-SÁNCHEZ, S.; VILLALPANDO-CARRIÓN, S.; NÚÑEZ-BARRERA, I.; SALGADOARROYO, B.; HELLER-ROUASSANT, S.; VALENCIA-MAYORAL, P. Síndrome de Fanconi- Bickel: reporte de un caso. Boletín Médico del Hospital Infantil de México, México, v. 66, n. 2, p. 171-177, 2009. NAINI, A.; TOSCANO, A.; MUSUMECI, O.; VISSING, J.; AKMAN, H. O.; DIMAURO, S. Muscle phosphoglycerate mutase deficiency revisited. Archives of Neurology, Chicago, v. 66, n. 3, p. 394-398, 2009. ORHO, M.; BOSSHARD, N. U.; BUIST, N. R.; GITZELMANN, R.; AYNSLEY-GREEN, A.; BLUMEL, P.; GANNON, M. C.; NUTTALL, F. Q.; GROOP, L. C. Mutations in the liver glycogen synthase gene in children with hypoglycemia due to glycogen storage disease type 0. The Journal of Clinical Investigation, New Haven, v. 102, n. 3, p. 507-515, 1998. OZEN, H. Glycogen storage diseases: new perspectives. World Journal Gastroenterology, Beijing, v. 13, n. 18, p. 2541-2553, 2007. QUINLIVAN, R.; BUCKLEY, J.; JAMES, M.; TWIST, A.; BALL, S.; DUNO, M.; VISSING, J.; BRUNO, C.; CASSANDRINI, D.; ROBERTS, M.; WINER, J.; ROSE, M.; SEWRY, C. McArdle disease: a clinical review. Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry, London, v. 81, n. 11, p. 1182-1188, 2010. REIS, F. C.; CALDAS, H. C.; NORATO, D. Y.; SCHWARTZ, I. V.; GIUGLIANI, R.; BURIN, M. G.; SARTORATO, E. L. Glycogen storage disease type Ia: molecular study in Brazilian patients. Journal of Human Genetics, Tokyo, v. 46, n. 3, p. 146-149, 2001. REPETTO, M. G. L.; URREJOLA, P. N.; LARRAIN, F. B.; GÜIRALDES, E. C.; HARRIS, P. D.; HODGSON, M. I. B.; DUARTE, I. G. C. Glicogenosis hepáticas: diagnóstico clínico y manejo nutricional. Revista Chilena de Pediatria, Santiago, v. 71, n. 3, p. 197-204, 2000. SANTOS-ANTUNES, J.; FONTES, R. Glicogenose tipo I. Arquivos de Medicina, Coimbra, v. 26, n. 3, p. 109-117, 2009. SARTORATO, E. L.; REIS, F. C.; NORATO, D. Y.; HACKEL, C. A novel mutation in a Brazilian patient with glycogen storage disease type 1a. Journal of Inherited Metabolic Disease, Lancaster, v. 21, n. 4, p. 447, 1998. SAVEGNAGO, A. K.; DA SILVA, R. M.; JONHSTON, C.; MARTINS, A. M.; DE MELO, A. P. L.; DE CARVALHO, W. B. Revisão sistemática das escalas utilizadas para avaliação funcional na doença de Pompe. Revista Paulista de Pediatria, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 272-277, 2012. 1605 Glicogenoses: uma revisão geral CARLOS, C. S. et al. Biosci. J., Uberlandia, v. 30, n. 5, p. 1598-1605, Sept./Oct. 2014 SERVIDEI, S.; DIMAURO, S. Disorders of glycogen metabolism of muscle. Neurologic Clinics, Philadelphia, v. 7, n. 1, p. 159-178, 1989. SETOODEH, A.; RABBANI, A. Transient neonatal diabetes as a presentation of Fanconi- Bickel Syndrome. Acta Medica Iranica, Teheran, v. 50, n. 12, p. 836-838, 2012. TARUI, S.; OKUNO, G.; IKURA, Y.; TANAKA, T.; SUDA, M.; NISHIKAWA, M. Phosphofructokinase Deficiency in Skeletal Muscle. A New Type of Glycogenosis. Biochemical and Biophysical Research Communications, New York, v. 19, p. 517-523, 1965. VIEIRA, J. C. F.; CARNEIRO, F. M.; ASSÊNCIO-FERREIRA, V. J. Alteração de deglutição em um caso de glicogenose. Revista CEFAC, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 34-39, 2004.