53 - 60 Uma certa tendencia.indd 1 Doutor em Ciências da Comunicação (Estética do Audiovisual). Pro- fessor-titular do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Brazil. jclobo2000@yahoo.com.br Recibido: 24/04/2008 Aprobado: 16/06/2008 I S S N 0 1 2 2 - 8 2 8 5 Vo l u m e n 11 N ú m e r o 1 J u n i o d e 2 0 0 8 53 - 59 Uma certa tendência do documentário brasileiro contemporâneo (Usos e abusos do estudo de comunidade, como método, e da entrevista, como técnica de pesquisa) Tendencies in Contemporary Brazilian Documentary Films (Use and Abuse of the Community Study as a Method and the Interview as a Research Technique) Júlio César Lobo1 Resumo O objetivo dessa comunicação é analisar quatro documen- tários brasileiros que se inspiram no método de estudos de comunidade e são estruturados na colagem de entrevistas como o seu discurso fi nal. Pretendemos trazer à discussão que essas narrativas são problemáticas ainda pelo fato de suas entrevistas e depoimentos, longe de evidenciarem algum dialogismo, se mostrarem um expediente para a criação de uma “transparência” do cineasta, originando ainda, o que nos parece mais grave, sérias infrações éti- cas. Essas infrações estariam principalmente no desfi lar, sem intermediações, de revelações da intimidade dos en- trevistados, dando vazão ainda a constrangimentos, por exemplo, entre casais de depoentes, que se utilizam da tela restrita do documentário e de sua precária recepção para uma lavagem de roupa. O nosso corpus é constituído pelos fi lmes: Santa Marta: Duas Semanas no Morro (RJ, 2000), dir. E. Coutinho; Babilônia 2000 (RJ, 2000), idem; Edifício Master (RJ, 2002), ibidem; e Nem Gravata, nem Honra (SP, 2003), dir. M. Masagão. Palabras-Chave: comunidade, documentário, entre- vista, cineasta. Abstract The article analyzes four Brazilian documentaries inspired by the community studies method and structured on a co- llage of interviews as the fi nal discourse. These narratives are problematic, even in terms of the interviews and the testimonies themselves. Far from being a dialogue set on stage, they refl ect an attempt at transparency on the part of the fi lmmaker. In our opinion, this leads to serious ethical infractions, primarily because it reveals, without inter- mediation, the intimacy of those being interviewed. For example, it would free a couple taking advantage of the documentary, and its limited reception, of any inhibitions about expressing their disagreements. The study is ba- sed on Santa Marta: duas semanas no Morro (RJ, 2000); Babilônia 2000 (RJ 2000), Edifi cio Master (RJ, 2002), all directed by E. Coutinho; and Nem Gravata, nem Honra (SP, 2003), directed by M. Masagão. Key words: community, documentary, interview, fi lm- maker I S S N 0 1 2 2 - 8 2 8 5 54 Uma certa tendência do documentário brasileiro contemporâneo A principal crítica que se faz à proposta meto- dológica de estudo de comunidade é que eles tendem em geral a confundir a descrição dela com as premissas produzidas pelos investigado- res antes mesmo das pesquisas de campo. Nos fi lmes em discussão, há uma velada proposta de se revelar para um público maior uma intuição dos cineastas: as localidades que são tema e ce- nário de seus fi lmes seriam exemplos contem- porâneos de associações emotivas de inteireza, coesão, comunhão, interesse público e tudo que é bom (Outhwaite, 1996, p. 116). Pelos depoi- mentos e confi ssões extraídos do nosso corpus, difi cilmente captaremos, através deles, momen- tos em que teremos verbalizações de pessoas in- teragindo com um mínimo de senso de interde- pendência e integração, com a exceção, talvez, das duas comunidades cariocas retratadas em Babilônia 2000. Uma outra forte crítica que se faz à proposta me- todológica de estudo de comunidade é: Tendên- cia a se limitar à consideração de uma situação defi nidamente localizada. Há, pois, o perigo de se negligenciarem os fatores que atuam de fora para dentro da comunidades ou as relações da comunidade com o mundo exterior (Nogueira, 1977, p. 21). Essa crítica pode ser pontualmen- te feita aos fi lmes Nem Vergonha, nem Honra e Edifício Master. No primeiro, uma pequena cidade nos limites entre São Paulo e Rio de Ja- neiro, às margens da Rio-Bahia, é tomada como se fosse uma imensa bolha, imune, por exemplo, à difusão dos meios de comunicação de massa, principalmente a tv abertas. No segundo fi lme citado acima, um gigantesco edifício de quarto- e-sala torna-se pela narrativa do fi lme uma ilha de sentido em plena Copacabana. Os fi lmes que compõem o corpus dessa co- municação são colagens de entrevistas, no seu sentido mais pejorativo. Frustra-se quem tentar buscar neles os requisitos mínimos que qualifi - cam as respostas a esse instrumento de coleta de dados: validade, relevância, especifi cidade, cla- reza, cobertura de área, profundidade e exten- são (Lodi, 1974, p. 19). Por outro lado, nesses mesmos fi lmes –faça-se justiça, com exceção do irresponsável Nem Vergonha, nem Honra– ob- serva-se o cumprimento das três características que produzem um bom ambiente para uma en- trevista produtiva: responsabilidade, permissão de expressão de sentimento e ausência de qual- quer tipo de coerção (p. 39). Filmes estruturados exclusivamente em entre- vistas, das quais, na maioria das vezes, temos acesso apenas às respostas, acabam por acentuar mais problemas para quais Bernadet (2003), tendo outros fi lmes como corpus, observa: A repetição ad nauseam desse dispositivo [dis- positivo espacial: um “centro imantado” ao lado da câmera onde se encontra o diretor-en- trevistador] gerou um espaço narcísico de que o cineasta é o centro, pois é para esse centro que se dirige o olhar do entrevistado. A câmera fi lma um olhar, que se dirige para sua fronteira, porque aí se encontra o ponto de interesse do entrevistado, isto é, a pessoa a quem ele se diri- ge. Não é apenas o olhar que se dirige para esse ponto, mas também a fala. Ou seja, tanto a di- reção do olhar quanto o direcionamento da fala remete ao próprio cineasta (2003, p. 286-7). Ainda a propósito da entrevista, Bernardet pon- tua como esse recurso acentua a predominância do verbal: O documentarista só obtém infor- mações cuja emissão sua pergunta pode motivar, informações verbalizáveis; apenas informações que o entrevistado aceita e consegue verbalizar (p. 287). O curioso é que a observação acima, construída a partir da análise de documentários brasileiros produzidos nos últimos cinco anos, poderia talvez ser estendida a uma boa parte do que se produz atualmente nessa modalidade ci- nematográfi ca, na França, por exemplo, para o que nos chama a atenção De France (2000): 55 Vo l u m e n 11 N ú m e r o 1 J u n i o d e 2 0 0 8 Júlio César Lobo Contrariamente ao que desejava Margaret Mead, a Antropologia dita ‘visual’, vítimas das transformações de seu instrumento, tornou-se uma disciplina of words. Claro que já não são exatamente os mesmos que falam, uma vez que a palavra dos antropólogos foi, em parte, cedi- da ás pessoas fi lmadas. Mas a Antropologia Fíl- mica nem por isso deixou, sob vários aspectos, de ser uma disciplina tagarela. Muitas de suas obras são parentes dos fi lmes produzidos, com vistas a um destinatário imediato, que coincide com o telespectador de televisão, ao qual con- vém apresentar os fatos com a ajuda do guia mais seguro e mais direto: a palavra (p. 29). Em Santa Marta: Duas Semanas no Morro, o logro informativo, resultado do confronto entre título e resumo comercial do fi lme e sua narra- tiva propriamente dita, dá-se desde os créditos: uma produção do Instituto Superior de Estudos de Religião (ISER). Não se tem nada no senti- do de um estudo de religiões, nem muito me- nos de “estudos superiores”. Há apenas duas seqüências de rituais, um deles afro-brasileiros, ou melhor fragmentos de rituais, com os quais os documentários preenchem seus vácuos de in- formações.. Nesse fi lme, há ainda longa série de tomadas de depoimentos sobre tópicos diversos, muito longe de qualquer “estudo superior de re- ligião” como adolescentes narrando como tentar se aproximar sexualmente de outros. Como não poderia faltar, há uma pessoa que fala sobre as conseqüências de sua tomada de orientação sexual, o que ocorre também em Nem Vergonha, nem Honra, e não se tem a contrapar- tida, em um propalado dialogismo, na revelação das opções sexuais da equipe de perguntadores. Voltamos à mencionada “transparência” dos do- cumentaristas contemporâneos. Enfi m, a seqüência mais longa é a de uma mul- her não-identifi cada, que se apóia na presença da equipe e de uma câmera para desancar um policial, que, ciente da publicidade do meio, per- manece calado. Não se mostra o que aconteceu com a citada desconhecida depois que a equipe encerrou as suas “duas semanas no morro”. Em Babilônia 2000, cinco equipes de fi lmagem se espalham pelos morros de Babilônia e Chapéu Mangueira, na área de infl uência do bairro de Copacabana, durante o último dia de 1999 apa- rentemente – porque, como se sabe, documentá- rios não explicitam objetivos – para documentar os preparativos da “comunidade” para a passa- gem do ano. A despeito de realmente mostrar as- pectos dessa preparação, o dialogismo da equipe manifesta-se também pela pulsão à xeretagem, que começa invariavelmente por perguntas como “Você tem namorado (a)?” “Você é casado (a)?” A pergunta, que poderia ser feita por um agente do IBGE ou do IBOPE é, na verdade, a senha para a intromissão na vida afetiva e sexual dos entrevistados, sem a contrapartida da revelação da vida afetiva e sexual dos perguntadores nesse exercício de “diálogo” com o “povo”. Louve-se aqui a postura da edição ao manter uma inter- venção de uma moça, Roseli, que não mora mais no morro, e mostra que sabe que jogo está jo- gando e que recebe a equipe assim: Você quer pobreza, mesmo? Comunidade, né? Quanto à confecção de seu discurso e de sua narrativa, esse documentário apresenta ainda os seguintes aspectos críticos: a) informações não-contextualizadas: Cida, uma das pessoas com mais presença entre os depoen- tes, em determinado momento e, aparentemente sem uma motivação externa, começa a falar so- bre as teorias e técnicas do Teatro do Oprimi- do, expediente desenvolvido pelo diretor teatral Augusto Boal a partir dos anos 70 inicialmente no Brasil. Não há maiores informações sobre o que ela está falando, pressupondo-se que o público indistinto de documentários como esse seja sufi cientemente informado sobre a obra I S S N 0 1 2 2 - 8 2 8 5 56 Uma certa tendência do documentário brasileiro contemporâneo brasileira de Boal para que haja uma contex- tualização, uma ilustração; b) abordagens indiscretas: freqüentemente, a primeira pergunta que se ouve sendo dirigido a um entrevistado, na verdade, majoritariamente para as entrevistas é :”Você é casada?” “Você tem namorada?” Sem uma pauta mais visível e sem entrevistados escolhidos por uma critério mais visível ou justifi cável, a equipe busca se aproximar deles, perguntando por suas vidas afetivas. Em alguns casos, parece ocorrer o que a equipe, em nossa suposição, anda buscando: revelações sobre abandono conjugal, fi lhos sem reconhecimento do pai, abortos e, principal- mente, choros, assistidos e retransmitidos pelas câmeras. É claro que o fi lme Babilônia 2000 não apresen- ta apenas aspectos criticáveis. Há uma vontade de se construir um painel a partir de resíduos de uma vida comunitária –ideal– em duas locali- dades da prestigiosa Zona Sul do Rio de Janei- ro. São exemplos desse movimento positivo da equipe os blocos relativos à formação, manu- tenção e papel social de uma rádio comunitária; à importância da rezadeira Conceição; ao papel da religião na condução moral de Marcos, cantor evangélico; às idéias da migrante mineira Djani- ra a propósito do que entende ser o Brasil; ao futebol de muquiranas (homens travestidos) no último dia do ano na praia de Copacabana como uma forma de integração social entre boa parte dos homens dos dois morros; temos ainda como extremamente positivos os tempos concedidos para as performances da otimista e bem-humo- rada Fátima imitando Janis Joplin. Em Edifício Master, a infl uência do estudo de comunidade e a aplicação das entrevistas sem direção alguma chegam a seu ponto crítico. Pega-se um edifício qualquer em Copacabana, colocando-se como sua particularidade o fato de possuir 276 apartamentos conjugados, 500 mo- radores e 23 apartamentos por andar. Esses da- dos, anunciados em voz off no início da narração –que poderiam sinalizar uma discussão sobre submoradia, planejamento urbano, etc.– na óti- ca do seu diretor, são o que menos importa pois o que mais importa é a “subjetividade” de parte de seus moradores, escolhidos por um critério não-informado. Tem-se, então, na maior parte do fi lme, uma sucessão de depoimentos, carac- terizados, grosso modo, por esses aspectos: a) veiculação de lugares comuns: Alessandra –que acaba por se identifi car como prosti- tuta– diz: Não tive infância; Luzinete, ao ser inquirida pela xeretagem de Eduardo Coutinho, pronuncia outro chavão: Não tive tempo para [me] casar; e Roberto, um camelô, 75 anos, libera mais outro chavão: Os fi lhos não é pra gente, não. b) ganchos não-explorados. Em algumas opor- tunidades, alguns entrevistados desenvol- vem tópicos interessantes, que poderiam proporcionar um debate interessante, mas como a equipe, que se quer transparente, descarta qualquer contrafação ou debate, deixa passar essas oportunidades em branco. Exemplos escancarados: José Carlos, um con- tador desempregado, fala como a Zona Norte discrimina quem vai morar na Zona Sul. Ele fala ainda de sociabilidade, anonimato e vi- zinhança, mas sua inteligente contribuição esvai-se no choque com uma outra entre- vista. Marcelo diz que Copacabana oprime, mas não se tem, na tela, o desenvolvimento do seu raciocínio. Se Marcelo diz isso, outra depoente, Laudicéia, que mora com a irmã, citada, Luzinete, se declara tijucana (da Ti- juca. Zona Norte do Rio de Janeiro) revela que sempre sonhava em morar em Copaca- bana. No entanto, esses dois depoimentos acima, contrastantes, não são contrastados no fi lme. 57 Vo l u m e n 11 N ú m e r o 1 J u n i o d e 2 0 0 8 Júlio César Lobo c) provocação e revelação de informações ín- timas (aqui, repetindo o mesmo expediente que críticos de mídia reclamam de progra- mas “populares” da televisão brasileira, e não só dela, certamente). Antônio Carlos, que se considera um “tímido”, perde subi- tamente a timidez para divulgar uma incon- fi dência: é pai solteiro. Luiz, porteiro-chefe revela que é fi lho adotado. Nesse tópico de revelação de informações íntimas, a falta de respeito ao Outro da equipe de Coutinho atinge o máximo na entrevista da costureira Esther, narrando sua tentativa de suicídio, e nas falas de Renata e Maria Regina, dis- correndo sobre seus abortos. Realmente, lamentável. A rigor, o que fi lme acaba passando por “subjeti- vidade do Outro” é o arrolamento da vida íntima de casais, principalmente. Uma mulher (M. Regi- na) usa da “câmera de inclusão” de Coutinho para uma revelação de pouco interesse social: Nós não prestamos, mas nos amamos. Como se não bas- tasse, revela ter se submetido a 15 abortos. Não se tem contrapartida em indiscrição por parte dos perguntadores de revelação alguma. Onde está o dialógico no cinema de Coutinho? Outros mora- dores revelam suas tentativas de suicídio. Na contramão dos que vêem no cinema dele (de Coutinho) dialogismo, interação, “humanismo”, etc., vemos, através das imagens e falas, como suas narrativas são monológicas, se bem que aqui a monologia por parte dos entrevistados. Todos os quatro fi lmes, a partir de seus títulos, criam no espectador uma promessa de estudo de comunidade que, a rigor, não se realiza. Tem- se uma grande quantidade de depoimentos, sem que se tenha a oportunidade de associa-los a uma questão-chave. Como esses fi lmes não são comunicações cien- tífi cas, não se podem cobrar deles objetivos ge- rais e secundários, mas mesmo a telerreporta- gem mais simples possui uma pauta. Nos fi lmes de Coutinho citados, não. Liga-se uma câmera, e a bisbilhotice do cineasta é que conduz a su- cessão de falas, poucas delas veiculadoras de al- guma informação socialmente conseqüente. Em 1947, Emílio Willems publicava, através da Secretaria de Agricultura de São Paulo, Cunha, tradição e transição em uma cultura rural do Brasil. O objetivo dessa pesquisa era avaliar o impacto da construção de uma rodovia federal naquela comunidade. Estava publicado o pri- meiro estudo de comunidade realizado no Brasil em áreas urbanas. Desde então, esse método de pesquisa tem sofrido críticas de variada nature- za: tendência a monografi as meramente descri- tivas e o escamoteamento dos problemas de ma- crossociologia pela ênfase na microssociologia. Curiosamente, 56 anos após o livro de Willems, um cineasta paulistano volta a Cunha, sem jus- tifi cativas aparentes, para aquilo que se imagina ser mais um estudo de comunidade: Nem Grava- ta, nem Honra. O fi lme de Masagão é apenas um dos muitos tipos de documentários que se têm produzido recentemente no Brasil não inocente- mente ancorados e estruturados tão somente em um desfi lar caótico, incessante e sem contrapon- to verbal ou visual de entrevistas e depoimentos, respostas essas em sua maioria provenientes de questão que não se (ou) vêm enunciadas. Nesse fi lme, uma série de cunhenses fala de assuntos diversos, manifestando uma quantidade enorme de preconceitos, discriminações, intolerância, enfi m, sob a complacência silenciosa, transpa- rente, da equipe de perguntadores do fi lme. Quando não faz a apologia do lugar comum, o fi lme se compraz na exibição de cenas tipo “la- vagem de roupa suja”: Luiz, um farmacêutico vangloria-se de ter traído a esposa –depondo ao seu lado–, insinua uma crítica generalizada ao controle emocional das mulheres, informando I S S N 0 1 2 2 - 8 2 8 5 58 Uma certa tendência do documentário brasileiro contemporâneo que, na sua farmácia, oitenta por cento dos cal- mantes são vendidos para mulheres. A mulher dele, na esteira do ressentimento televisionado, vinga-se dele, dizendo que não o ama mais, mas, sim que apenas o tolera... O que nos parece mais grave entre os vários pontos criticáveis nesse documentário diz respeito a procedimentos éti- cos na montagem de sua narrativa. Na maioria das vezes, os depoimentos, principalmente de casais, são antecedidos ou seguidos de obser- vações jocosas inscritas na tela, através de efei- tos especiais, observações que, certamente, não estavam disponíveis aos depoentes quando das entrevistas. Como expusemos brevemente acima, no fi lme de Masagão, tenta-se produzir humor à custa de revelações de intimidades e de ressentimentos dos que se dispuseram, provavelmente sem re- muneração, a contribuir ingenuamente para a produção de mais um documentários brasileiro. Essa postura da edição –postura da direção, en- fi m– chama-nos a atenção para o princípio do “consentimento informado”, levantado por Ni- chols (2005) observa quando busca responder à questão Por que as questões éticas são fun- damentais para o cinema documentário? A res- posta dele: Esse princípio, fortemente embasado na An- tropologia, na Sociologia, na experimentação médica e em outros campos, afi rma que se deve falar aos participantes de um estudo sobre as possíveis conseqüências de sua participação (Nichols, 2005, p. 37). Nem Gravata, nem Honra, entre outras carac- terísticas criticáveis, que levantaremos a seguir, é um dos muitos tipos de documentários que se têm produzido recentemente no Brasil que são ancorados e estruturados tão somente em um desfi lar caótico, incessante e sem contraponto verbal ou visual de entrevistas e depoimentos, tendendo a confi ssões inesperadas, que são res- postas, em sua maioria, a questões que não ouvi- mos serem enunciadas. Nesse longa-metragem, que se quer engraçado, à revelia dos entrevista- dos, uma série de moradores de Cunha, a cidade do primeiro estudo de comunidade no Brasil, brevemente mencionado acima, discorre sobre assuntos diversos, manifestando uma quanti- dade enorme de preconceitos, discriminações pejorativas, intolerância, enfi m, sob a compla- cência silenciosa, transparente, da equipe de perguntadores do fi lme. Enfi m, buscamos evidenciar o que nos parecem problemas importantes com relação ao uso e abuso do método dos estudos de comunidades e da entrevista como instrumento de obtenção de dados, visando à produção de alguma infor- mação ou conhecimento. Notamos também, nes- se corpus, problemas éticos na exposição de in- timidades, traduzidos no estímulo à indiscrição como fonte de gozo para o espectador. Conside- ramos também problemático o abandono acríti- co da geração de expectativas do documentário como espaço para reportagem jornalística, fi lme sociológico, documento etnográfi co, fi lme de intervenção ou de animação cultural. Pelos exemplos dos fi lmes discutidos nesse tex- to, somos tentados a começar a acreditar que tem faltado argumento ao documentário brasi- leiro contemporâneo, mais precisamente aqueles produzidos nos últimos dez anos, avançados em termos de uso de tecnologia de captação de ima- gens, mas, aparentemente talvez, estacionados em um tempo distante, com relação á produção de informação como se não houvesse mais mui- ta coisa a ser informada ou, pelo menos, não existisse mais muita coisa a ser problematizada com relação a estudos de comunidade. Após tanta fi lmes tagarelas, tanta indiscrição de cineastas-entrevistadores e tanta falta de argu- 59 Vo l u m e n 11 N ú m e r o 1 J u n i o d e 2 0 0 8 Júlio César Lobo mento nos documentários que buscamos aqui brevemente analisar, é possível que a lacuna maior talvez seja aquela que não exploramos devidamente acima: a perda de qualquer virtude narrativa na maioria dos documentários brasilei- ros no período citado. E, nesse aspecto, a propó- sito de mais essa lacuna, fechamos essa comuni- cação com o lamento feito por Walter Benjamin nos anos 1930, se bem que voltado a uma outra série artística, a literária: O narrador – por mais familiar que este nome nos soe – de modo algum conserva viva, dentro de nós, a plenitude de sua efi cácia. Para nós, eles já é algo distante e que ainda continua a se distanciar [...] Esta distância e este ângulo nos são prescritos por uma experiência, que quase todo dia temos ocasião de fazer. Ela nos diz que a arte de narrar caminha para o fi m. Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o emba- raço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências (1980, p. 57). Referências Benjamin, W. et ál. (1980). Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. Bernardet, J. C. (2003). Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Companhia das Letras. De France, C. (2000). Do Filme Etnográfi co à Antropologia Fílmica. Campinas, SP: EdUni- camp. Lodi, J. B. (1974). A Entrevista: Teoria e Práti- ca. São Paulo: Pioneira. Nichols, B. (2005) [2001]. Introdução ao Docu- mentário. Campinas, SP: Papirus. Nogueira, O. (1977). Pesquisa Social (Intro- dução às suas técnicas). 4 ed. São Paulo: Com- panhia Editora Nacional. Outhwaite, W. et ál. (eds.) (1996). Dicionário do Pensamento Social do Século 20. Rio de Ja- neiro: Jorge Zahar.